Fitas de 2001
Fitas de 2002
Fitas de 2006
Fitas de 2007
Control
Floripes
O sonho de Cassandra
O Comboio das 3 e 10
Astérix nos Jogos Olímpicos
No vale de Elah

O lado selvagem
Haverá Sangue
Uma questão de consciência
Expiação
Persépolis
Este país não é para velhos

Ponto de mira
Uma segunda juventude
Rec
Shine a Light
Nós controlamos a noite
Procurado

Tropa de elite
O cavaleiro das trevas
Capítulo 27
Destruir depois de ler
O corpo da mentira
Ensaio sobre a cegueira
A turma
Amália, o filme
007 – Quantum of Solace
Fitas de 2009
Fitas de 2010
Fitas de 2011
Fitas de 2012
Fitas de 2013

1Control

Um closeup de Ian Curtis

Já quando saiu '24-hour party people', em que Tony Wilson contava a sua versão sobre a cena pós-punk de Manchester, apareciam os Joy Division / New Order. Mas aquele apaixonante filme, como testemunho pessoal, olhava-os um pouco à distância, pois quem testemunhava não esteve suficientemente perto deles.
É que no caso dos Joy Division, cuja música só por si serviria para legitimar a revolução punk, era preciso mais. E em especial sobre a personalidade do poeta e cantor Ian Curtis, que se suicidou precisamente quando o grupo estava a preparar-se para dar o salto no big business. O monólogo de Curtis à saída do hospital, onde tinha estado a recuperar dum dos seus ataques de epilepsia, explica-nos como essa perspectiva lhe causava angústia. E melhor compreendemos através deste filme o sentimento que ele tinha de ter orientado mal a sua vida, encurralado nos caminhos que ele próprio traçou — pelo menos era assim que ele teria visto as coisas. As canções dos Joy Division (nomeadamente She's Lost Control, Isolation, Love Will Tear Us Apart e Dead Souls) são-nos mostradas como flashes autobiográficos de Curtis, e isso é uma novidade que o filme traz a quem se interessa pelo percurso do grupo.
O preto-e-branco das imagens ajuda-nos a voltar atrás no tempo, mas também a vestir a nossa experiência do filme com a austeridade e mistério que ecoava nas capas dos discos dos Joy Division. O valioso testemunho da mulher de Curtis (esplendidamente representada por Samantha Morton) completa-se com o evidente trabalho de investigação realizado, de que resulta uma perspectiva multifacetada, não só deste herói dos finais dos anos 70 e da música do seu grupo, mas da vivência de então, numa Inglaterra cuja paisagem urbana era a possível sucessora dos escombros que ficaram da Segunda Guerra. Mesmo para quem não conheça nada disso, é uma fita que vale a pena.

2Floripes

A lenda e a vida

Floripes é um documentário, no qual se mistura uma dramatização baseada na personagem do pescador Julião, da ilha da Culatra (ao largo de Olhão). Os testemunhos em entrevista são uma paisagem humana magnificamente composta, com uma espontaneidade e autenticidade notáveis. O hábil embuste da moura encantada, para afastar a curiosidade sobre um certo lugar onde se descarregaria contrabando, ganhou lugar no espírito colectivo não por ingenuidade mas por uma teia de razões que são o principal tema do filme. Interessante incursão. Há ainda outro ponto muito positivo a realçar: a qualidade técnica e artística das imagens (a não ser talvez algum "grão" nas cenas nocturnas) e dos sons, invulgar para o que é costume presenciar nas produções portuguesas. O olhanense Miguel Gonçalves Mendes merece, assim como a equipa que formou para esta realização, todas as oportunidades para poder voar alto na 7ª Arte.

3O sonho de Cassandra / Cassandra's Dream

Tragédia de jogadores

É fatal a tentação de comparar este filme com Match Point. E, apesar do interessante argumento e de momentos dramáticos muito bem conseguidos, não lhe chega aos calcanhares. Mas recomenda-se. A dualidade entre os dois irmãos (Ewan McGregor e Colin Farrell) é a espinha dorsal do argumento, tão diferentes entre si mas tão a mesma coisa na sua essência. E se tudo o que fazem é diferente, se os que os rodeiam (a começar pelos pais) os distinguem tanto um do outro, eles estão ligados umbilicalmente como se gémeos siameses fossem. Ambos são jogadores, ao ponto de viverem obcecados com jogos de altas paradas. Jogos diferentes, claro. Até que um tio misterioso (Tom Wilkinson) entra em cena e mete-os num jogo onde eles não se sentem à vontade. O argumento é muito inteligente, desenvolvendo-se a partir da "tal" jogada por dois rumos totalmente diferentes, que de tão antagónicos se tornam inconciliáveis. Como nunca antes tinham sido as vidas destes irmãos.
O pior defeito deste filme, e um defeito grave, é a direcção de actores. Sobretudo na primeira metade, quase todos os diálogos soam a falso, soam a estúdio, ou a palco de teatro, são fraco cinema. As personagens parece que foram coladas aos cenários, como se de cromos animados se tratassem. Isso é tão espantoso em Woody Allen, que até se poderia pensar que ele o fez de propósito. Se o fez, é uma experimentação que só consegue colher estranheza e é muito injusta para com o excelente lote de actores deste filme. Talvez valha pelo efeito de progressiva familiaridade que vamos tendo a partir da metade, mas estranha-se. Tal como se estranha a incapacidade das personagens de mentirem. São cromos, mesmo!
Colin Farrell, quase sempre com a cara amachucada pelas suas angústias, tem a representação mais apaixonante. Mas sem McGregor a fazer-lhe o contraste, não iria ter o mesmo efeito. No fundo, é uma tragédia interessante, que na forma pode ser esquisita, mas que pelo fazer-nos pensar tem bastante mérito.

4O Comboio das 3 e 10 / 3:10 to Yuma

Western psicológico

Tem dois valentes tiroteios, o primeiro bem encenado e mais ou menos convincente, o outro uma treta completa. Vale a pena ir ver, não para saber qual é qual, mas pelo que o salva de ser uma vulgar coboiada: a autenticidade das personagens e de grande parte das situações. Não há heróis, e precisamente quando o aparente herói confessa que também não o é, isso salva-lhe a vida — ele é o pai que o bandido da fita gostaria de ter tido, e ser um pai é a melhor maneira de um homem ser herói.
Um e outro do dueto de protagonistas, interpretados respectivamente por Christian Bale (estupendo; finalmente encontrou-se num papel à sua medida) e Russel Crowe (com a sua inconfundível presença, aliando malvadez e sedução, sempre a controlar a situação apesar de algemado), são a alma duma fita que, não sendo um clássico como Unforgiven, tem bastante mérito.

5Astérix nos Jogos Olímpicos / Astérix aux Jeux Olympiques

Renovação pífia

O trailer diz tudo: é Brutus nos Jogos Olímpicos. Da história original aproveita pouco, substituindo o humor subtil de Goscinny, e o traço mágico de Uderzo, por anedotas bastante vulgares e actores que, do lado gaulês (talvez com a excepção de Depardieu), não convencem.

6No vale de Elah / In the Valley of Elah

As mazelas de Golias

As temáticas já foram exploradas: inadaptação do ex-combatentes norte-americanos no seu regresso à pátria; a guerra frustrante no Iraque; e a candid camera dos telemóveis. Mas este filme integra-as duma maneira inteligente e carregada de significado, digna do nome de Paul Haggis, embora se lamente durar demasiado tempo. A morte dum cabo regressado do Iraque, filho dum sargento reformado (Tommy Lee Jones, muito sóbrio, muito ele mesmo) é o pretexto para os acontecimentos que, numa cidade que vive quase só para a base militar onde o falecido se encontrava estacionado, lançam este filme.
O protagonista é a violência que vive dentro de cada um, violência essa que cresce desmedidamente no viver do teatro de guerra. Os vídeos do telemóvel foram feitos pelo cabo para que o pai, como ex-militar, se apercebesse da guerra que agora se faz, um cenário de horrores que custa a digerir e que se pega a tudo e todos, tornando os soldados insensíveis ao sofrimento. Abu Ghraib a servir de pano de fundo? Apenas nos é explicado porque é que uma graçola sobre a condução automóvel pode degenerar em briga e, por carambola, em coisas mais graves. Tudo o resto se pode imaginar a partir daí.
O pior de tudo é constatar-se que a preparação psicológica dos soldados não foi feita, chegam às camaratas ainda com o acne agarrado às bochechas e completamente ignorantes do que é o mundo e a guerra, e largam-nos nesta apenas com a parte mais fácil do treino militar. Não admira que se droguem, não admira que, na ausência de inimigo declarado, se virem uns contra os outros, ou contra quem têm em casa. Há um pouco de tudo isso no filme.
A realização é muitíssimo competente, com uma fotografia soberba, e também vale a pena realçar Charlize Theron, a detective que acaba por ajudar o paciente mas determinado pai do assassinado, numa versão que, não escondendo a sua beleza, a despe de tudo o que tem tido de "boneca" nos filmes que já fez. Só é pena a morosidade do filme, que não se justifica, e ainda pior com a pretendida manobra de diversão da única cena de acção — aliás, a sua total inutilidade demonstra o preconceito de "popularidade" que se impõe num filme como este, banalizando-o (mesmo que bem encenada, como é o caso). Não houve como em Brokeback Mountain a coragem de assumir o registo próprio no conjunto de todo o filme, e ao contrário daquele que também era comprido, não havia a substância para prolongá-lo como ficou. Perde-se na coerência, perde-se no rigor artístico, o que é uma pena porque nos restantes aspectos é uma boa fita.

7O lado selvagem / Into the Wild

Nos braços da Natureza, e do espectador

Passar para filme a aventura dum rapaz que, tendo tido todas as oportunidades de sucesso, as trocou pela autodescoberta através da viagem, da auto-subsistência, dos encontros com outras vivências, é um desafio plenamente ganho por Sean Penn, mais um actor de primeira grandeza que se mete a realizar filmes e o faz em grande estilo.
Irónico, é tudo isso resultar numa frase que se limita a lembrar a necessidade de não viver apenas para si mesmo, de partilhar a vida. A dificuldade de chegar a uma conclusão que todos diriam trivial, é o preço de ensinar-se a progredir na vida duma maneira individualista. A vida não é isso, ou não deveria ser.
Para uns, era um menino mimado que queria apenas divertir-se a esticar os limites, sabendo que podia sempre voltar para o conforto material de casa dos pais (William Hurt e Marcia Gay Harden). E a prova dessa futilidade é que nem com a arriscada descida de canoa ele perdeu o medo da água. Ou, por outras palavras, há que pensar duas vezes antes de ir ao encontro da Mãe Natureza, que é muito ciosa dos que a ela regressam. A luta por emancipar-se dela é um feito da Humanidade que nos esquecemos de apreciar.
Para os outros todos, é a evasão com que se sonha e em geral não se concretiza, e então aí o protagonista não é um estereótipo de menino mimado, é o que cada espectador constrói dentro do entendimento que tem da sua própria evasão. Ao fazer-se abraçar pela Natureza, o protagonista faz-se também abraçar pela plateia, milhões de abraços diferentes. E, comparado com isso, a personagem histórica de McCandless, que inspirou este maravilhoso filme, é uma abstracção. Este filme, mais do que uma reconstituição biográfica, é um relato de humanidade.
Quanto a Emile Hirsch, que já trazia uma carreira interessante, protagoniza este filme com grande personalidade, numa evidente cumplicidade com Penn. Excelente escolha.

8Haverá sangue / There will be Blood

Como se constrói um carácter violento

Uns 15 minutos de cinema sem palavras é a maneira como somos recebidos neste longo e grande filme. Intenso e eficaz, não é boa ideia chegar atrasado!
Muito centrado no protagonista, em quem Daniel Day-Lewis põe TUDO, emerge a vida dum homem de negócios, com o que isso implica: por um lado a vontade poderosa, e por outro a personalidade sombria que foge de si mesma para dedicar-se ao dinheiro. A sua vida é uma sucessão de episódios duma luta solitária e impiedosa por ter um lugar ao sol.
De todas as personagens que se cruzam na sua vida, há o destaque para o "pastor" (Paul Dano, outra actuação magnífica), que permite polarizar a trama pois é de todas elas a única que consegue ir além duma mera comichão para o "empreendedor".
O filme dura enquanto esse encontro faiscante dura. Numa ocasião em que os dois contracenam, lê-se a frase "haverá oleoduto...", que resume imensa coisa mas não chega para ser título deste filme, pois além do oleoduto haverá sangue.
A realização é distinta, irreverente, impecável; a banda sonora, muito imaginativa, invulgar e eficaz. Paul Anderson é um mestre. Diria que só lhe falta uma coisa: um tema à altura. Não é que este filme (e os anteriores) esteja abaixo do muito bom, mas na sua arte cabe ainda mais. A ver o que se segue.

9Uma questão de consciência / Michael Clayton

Filme intenso mas que deixa um travo de insatisfação

Aqui está um bom exemplo de como diálogos bem feitos não compensam um argumento cheio de banalidades, como uma fotografia exímia e uma montagem exemplar não fazem uma boa realização, e como um bom leque de actores (Clooney, Wilkinson e Swinton) não chegam para conseguir-se um bom leque de personagens. Embora até ao fim da sessão o interesse se mantenha, por via das inúmeras qualidades de execução, no final fica uma sensação frustrante, por culpa das inúmeras falhas de concepção. Ainda o que escapa, neste capítulo, é o protagonista, uma das figuras melhor compostas que se tem visto, e que é servido pela actuação muito comedida de Clooney, opção certeira que nos salva do bocejo. Tudo o resto não passa de caricaturas. É de ver, mas duvido que se considere digno de admiração.

10Expiação / Atonement

É mesmo um filme muito bonito

Numa daquelas Manor inglesas, com a sua ritualizada dicotomia upstairs-downstairs, há um jovem (James McAvoy) que se arrisca a atravessar a quase impenetrável separação entre os dois níveis, quer pelo hábito da convivência, quer pelo seu próprio mérito; mas sobretudo por um amor que cresceu dentro desse hábito e desse mérito. O mínimo pretexto pode ser usado para castigá-lo pelo atrevimento, e é isso que acontece, mas da maneira mais peculiar: uma encenação montada pela ainda criança aspirante a escritora (Saoirse Ronan, um talento precoce plenamente confirmado).
De facto, em vez da pecinha que ela queria fazer com as outras crianças nessa noite, ela teve a oportunidade de pôr em cena algo de muito "melhor", e não só: fazê-lo na vida real. Em parte, motivada por uma ponta de ciúme da irmã mais velha (Keira Kneightley). Só na adolescência, quando um certo tipo de solidão começa a tomar posse dela, se aperceberá do mal que fez, para carregar o peso da culpa até ao fim da vida. Expiando-a.
Para além do enredo artisticamente muito feliz, há a qualidade dos actores e de tudo o que envolve a produção, e há a liberdade, o bom gosto, a eloquência e a mestria da realização. Bastaria referir a dupla visão da cena da fonte, a cena da biblioteca e o longuíssimo travelling na praia de Dunkerk, para concluir-se que há momentos de antologia neste filme. Apesar de haver uma pontinha a mais de autoconsciência artística (a banda sonora, embora muito imaginativa no melhor sentido, é um dos exemplos disso), o seu grande valor também se evidencia pelo facto da experiência que constitui atingir maior intensidade pelo simples facto de ser prolongada — o que é notável.

11Persépolis / Persepolis

A simplicidade no seu melhor

Esta autobiografia da co-realizadora é um delicioso espectáculo onde nos são dadas a conhecer perspectivas interessantíssimas da História recente do Irão e da adaptação ao mundo ocidental, enquanto se desfia uma narrativa cheia de vivacidade e elegância. O sentido de humor é original e muito eficaz, salpicando de leveza os acontecimentos dramáticos que vão passando no écran. Só quem não tiver sentido de humor deixará de gostar deste filme.
Além disso, o estilo visual, fiel à origem (banda desenhada), é um monumento à difícil arte da simplicidade, pois nas figuras não falta nada de expressão, e também de naturalidade dos movimentos, tornando-as tão reais e, ao mesmo tempo, tão BD. Excelente.

12Este país não é para velhos / No Country for Old Men

É tudo por causa do dinheiro

O título tem de ser recordado ao longo da fita, porque podemos andar distraídos com as aventuras do gato (Javier Bardem) e do rato (Josh Brolin) e da maleta que este último encontrou, qual queijo numa ratoeira.
Logo de entrada temos o tom old timer da voz do xerife (Tommy Lee Jones), recordando os velhos tempos vividos pelos seus antecessores no cargo, uma dinastia que ele parece estar a terminar, e depois ouvimos desabafos que com ele fazem outros old timers, sentindo-se estranhos naquele país (os States em 1980, numa altura em que uma ATM era novidade).
Mas iludem-se, quando naqueles desabafos dizem que é tudo por causa do dinheiro, como se essa não fosse a causa de tudo o que se passou no tempo deles e muito antes... A maneira como se negoceiam peças de roupa, e com quem, mostra a raiz do problema. Intemporal. O desabafo será mais por causa de já não ser da mesma maneira, e por isso acrescentam: e por causa da droga. Mas o dinheiro (e as armas para o servirem) não é de nenhum tempo em particular. O mal é sempre o mesmo. E com isso, o xerife sabe que não pode grande coisa, pelo que não faz mais do que o necessário.
O filme é notável, as personagens principais estão impecavelmente concebidas e realizadas. É violento, mas uma violência que evita ser exibicionista, servindo sobretudo para sublinhar a noção permanente de perigo de se perder a vida. Aliás, o pudor dos Coen traduz-se em nunca vermos qualquer das personagens mais relevantes a morrer.

13Ponto de mira / Vantage Point

Filme de acção criativo

Aqui leva-se o esquema de Tarantino, em Jackie Browne (de reproduzir um mesmo episódio sob vários pontos de vista e em tempo real, às repetições), a um extremo de complexidade virtuosística que impressiona. Isto porque as sequências são muito elaboradas e o número de repetições é bem grande. Embora haja um momento em que os constantes "regressos" podem irritar, a excelente concepção do todo acaba por impor-se e tornar o esquema aceitável e, depois, até estimulante.
Àparte o problema da temática e do tipo de discurso feitos demasiado para o já condicionado público dos States (terrorismo islâmico, segurança, a figura do presidente), como obra cinematográfica é um feito notável.

14Uma segunda juventude / Youth Without Youth

Pastelada de alta qualidade

Um conto fantástico com um protagonista romeno serve de pretexto para o que se traduz numa divagação algo delirante de Coppola. É tudo muito bom, artística e tecnicamente, os protagonistas (os ressuscitados/reencarnados Tim Roth e Alexandra Maria Lara) são grandes desempenhos (e ela é lindíssima), mas... o filme estica, estica, estica, a ponto de tornar-se aborrecido. D(i)vagar mas não tanto!

15Rec

O prédio da raiva

Filme espanhol passado dentro dum prédio em Barcelona, esta obra faz uma hábil utilização dum variado vocabulário e processos de composição do género de terror, numa história articulada, inteligente, e muito, muito forte. Raramente um tal desfile de clichés consegue legitimar-se como aqui, pela maneira brilhante como tudo é concebido e doseado. É excelente a capacidade de nos fazer ver tudo através duma única câmara bem "objectiva", Blair Witch não anda longe mas Rec é-lhe superior em tudo. Até pelo facto de vermos uma portuguesa a comer espanhóis se recomenda!...
Foi premiado no Fantasporto e não pode haver dúvidas sobre o mérito dessa distinção.

16Shine a Light

O concerto ao vivo por excelência

Os Rolling Stones ao vivo, nada de novo nesse aspecto, aliás é quase sempre mais do mesmo. Mas com Martin Scorcese a filmar, a coisa torna-se mais interessante. Não o que fez a magnífica biografia de Bob Dylan, mas o que filmou o concerto de despedida dos The Band, o mesmo que contribuiu sabe-se lá quanto do que faz do filme Woodstock um marco incontornável no género. Só que com meios actuais e, presume-se, muito backup financeiro. Dito isto, é a promessa duma experiência de cinema fora do vulgar.
O realizador e a sua equipa montaram uma estrutura que foi feita para captar todos os pormenores, e sobretudo todas as emoções naqueles rostos, de modo a sentirmos um pouco o que os Stones sentem enquanto estão donos do palco — e enquanto a música vai saindo deles. Tiveram o talento de consegui-lo, imagina-se a azáfama de Scorcese a orientar os operadores de câmara de modo a não perder-se nenhuma oportunidade. E se Mick Jagger é o natural dono do palco, as emoções em Keith Richards são donas do filme.
São inúmeros os momentos únicos, e se juntarmos a sábia intercalação de entrevistas, e momentos de eleição como a actuação com Buddy Guy, só podemos com isto concluir que Scorcese fez aos Rolling Stones o mais belo tributo que se poderia conceber. Não é nada do que o trailer poderia levar a pensar, mas isso já se sabe como é...

17Nós controlamos a noite / We Own the Night

A história dum recrutamento

Joaquin Phoenix em mais uma presença do tamanho do mundo. Personagem que começa por ser ambígua para depois, face aos sacrifícios familiares que enfrenta, se junta à tradição da família tornando-se polícia. O ambiente deste filme é sempre opressivo, as personagens vivem em permanente intranquilidade, sujeitas a qualquer momento a serem destruídas, o que acaba por acontecer fisicamente ao pai (Robert Duvall) e espiritualmente ao irmão (Mark Whalberg). A maldade dos bandidos não podia ser mais posta em evidência, justificando em nós a opção de matar sem piedade. Não que isso faça desaparecer o mal, mas sempre é menos este ou aquele numa guerra sem tréguas.
Há imagens de antologia, como o olhar de ódio que surge em Joaquin Phoenix quando percebe quem mandou matar o irmão, o salto pela janela (nunca vi nada assim, como câmara subjectiva!) e a cena da perseguição de carro no meio da chuva mais implacável. Há cineastas assim... diferentes.

18Procurado / Wanted

Filme giro (dá saudades do Matrix)

Estética estupenda, só pela delícia das imagens já é um filme a valer a pena. A história, porém, mesmo levando em conta basear-se numa BD, é que vale pouco, cheia de banalidades àparte a maneira como lida com as ambiguidades dos bons serem maus e vice-versa.
James McAvoy é mais uma vez um protagonista em alto nível, excelentemente adaptado às funções de herói de acção, insuspeito como convém. Anjelina Jolie irrompe no écran com uma magia que lhe é única, porém vai-se banalizando com o tempo. E há cenas espantosas, como a do desfiladeiro com o combóio, e a da invasão de ratos.

19Tropa de elite

Merecer a camisa

O filme começa exactamente ao meio, retoma mais atrás para ver-se o desenvolvimento das personagens, para depois centrar-se no BOPE, a tal tropa de elite que assume o combate ao tráfico de droga como uma guerra, onde não há limites, nem de meios de acção, nem de classes sociais. Do lado do BOPE, o compromisso com os objectivos e com a eficácia em atingi-los é absoluto, mas este combate desgasta os seus membros, na noção que têm de não poderem vencer, pelo apoio que o inimigo tem entre os do seu lado — a polícia corrupta, o consumo na sociedade. Daí que só consigam orgulhar-se de desforras pontuais, impotentes como estão no seu compromisso de honestidade a que ninguém dá o valor que merece, pois a bem dizer o que fazem é incomodar. Seja entre a "sociedade de elite" maconheira, seja na família.
Tudo é mostrado com uma acutilância e realismo... fortes, não vejo outro termo. Não faltam o mais indigesto e inconfessável, como a tortura, os erros que custam vidas, a desumanidade que se contagia entre todos. É um documento, é também uma tragédia (no sentido literário), é uma obra de cinema muito bem concebida e realizada.
E tem Wagner Sousa, o protagonista, em mais uma faceta da sua carreira de actor. Na justa medida.
Pode ser... forte, mas granjeia o maior respeito. Mesmo se nos rimos dos abundantes fait-divers.

20O cavaleiro das trevas / The Dark Knight

Não fosse Heath Ledger, não valia um caracol

Chato, chato, chato. Christian Bale não convence nada, Michael Caine e Morgan Freeman não passam de bibelots, e a debilidade do argumento é confrangedora. Ainda por cima, dura mais de 2 horas!
Vale a pena só pela magnífica presença de Heath Ledger. Pode dizer-se que em Batman só o Joker é que é uma personagem consistente, mas com este desempenho o malogrado actor australiano oferece-nos todo o seu brilhantismo. Àparte o Doutor Parnaso, ainda à espera de sair, é um canto de cisne à altura da sua carreira.

21Capítulo 27 / Chapter 27

Jogos de coincidências

Para aqueles que de alguma maneira sentiram a tragédia da morte violenta de John Lennon, este filme é indispensável.
Para todos os outros, vale à mesma pelo exercício de reconstituição cinematográfica dos passos do assassino. Mark Davis Chapman (Jared Leto, protagonista e co-produtor) é-nos apresentado como o típico zé-ninguém norte-americano cuja existência medíocre é atormentada pela quimera da fama. Dá perfeitamente para acreditar que ele tenha escolhido esta solução desesperada apenas para ser famoso, e sem dúvida que o conseguiu, de maneira infame mas conseguiu-o. A sua insensibilidade pela arte da vítima vê-se pela maneira como manuseia o álbum Double Fantasy (e a opinião que expressa sobre o preço que teve de pagar por ele), que apenas lhe serviu para obter o famoso autógrafo. Nem sequer olha para a capa detidamente, como toda a gente no tempo dos álbuns de vinil. E a premeditação é óbvia, não só pelo facto de ter trazido a arma como pelos objectos que escolheu para ficarem "expostos" no quarto de hotel.
E ainda assim, ele hesitou. Só mesmo o monstro da mediocridade e do anonimato para forçar o acto que cometeu. Tudo o resto, como por exemplo a sua pretensa emulação da personagem Holder Caulfield do livro Catcher in the Rye, e as pretensas coincidências com a história desse livro, são apenas pretextos para o maior phony de todos, M. D. Chapman. Nada deixa de ser explorado com a maior destreza neste filme.
Mas, falando de coincidências, e sabe-se que Lennon dizia que elas não existem, há a referir a escolha (acertada) do actor Mark Lindsay Chapman para a personagem do músico. É o tal que Yoko Ono despediu por causa do nome. A semelhança física é impressionante, mesmo que seja apenas para um par de aparições fugazes (e, com um tocante pudor, a câmara quase que nem o enquadra, ou cuida de não focá-lo). Outra coisa que sempre terá intrigado os milhões de admiradores de John Lennon foi o motivo para ele ter estado em silêncio discográfico durante 6 anos e, logo que o mesmo foi quebrado com Double Fantasy, alguém o ter vindo matar à porta de casa. Lennon era tão amado quanto odiado, e o facto dum miserável como M. D. Chapman vir carregado de dinheiro, e já pela segunda vez na mesma altura, torna plausível a ameaça latente que Lennon devia ter em cima de si.

22Destruir depois de ler / Burn After Reading

Um olhar sobre a vulgaridade

Ninguém nesta história é personagem que preste. Chega a parecer uma fita negativista, no meio das gargalhadas que produz vislumbra-se uma trágica desistência do género humano. Se estamos a rir daqueles "cromos", é porque nos esquecemos que aquilo também somos nós. Entre gente tíbia e frustrada, oportunistas de todos os géneros, pragmáticos da limitação de danos, e vaidosos seguros de si, o panorama é deprimente, mas terrivelmente familiar. É a sociedade da abundância, entretida com trivialidades, destituída de grandeza.
Todos os actores estão magnificamente dirigidos e filmados, com destaque para uma Frances McDormand omnipresente e uma Tilda Swinton rica de detalhes subtis e cheios de classe, muito mais do que no filme em que impropriamente ganhou o óscar, e vá lá, um John Malkovich histriónico. A cena do disparo é simplesmente magistral.
No conjunto, a qualidade é inegável, a futilidade também, o divertimento garantido.

23O corpo da mentira / Body of Lies

As tristes figuras da CIA

Eis as peripécies dum agente de terreno (diCaprio) e do seu supervisor (Crowe), típico operacional de gabinete, ambos agentes da CIA, na caça a um terrorista islâmico. É esta a maneira inteligente que a fita tem de expor, nua e crua, a tendência para o desastre dos serviços secretos americanos. Melhor até que em "O bom pastor", aqui fica patente a derrota do poder económico e tecnológico pelos vícios de arrogância e pela inadaptação dos americanos. Porque o pior inimigo que têm de enfrentar é a sua própria incompetência.
Ridely Scott oferece-nos mais um espectáculo cinematográfico de grande mestria, com destaque para as imagens de satélite a espiarem as cenas em tempo real. DiCaprio continua muito bem na sua veia de herói heterodoxo, que se safa bem com a sua esperteza e destreza, Crowe (outra vez engordado) é menos brilhante mas está em bom nível, o papel é um pouco ingrato para ele.
As duas horas de filme passam sem se dar por isso. E pode ser até que se fique a pensar nalgumas das coisas que vão acontecendo na vida real: de facto o nosso modo de vida é muito frágil.

24Ensaio sobre a cegueira / Blindness

Obra-prima que nos dignifica

A cegueira pode ser de vários tipos, incluindo esta que (salvo numa personagem) é feita de luz indistinta, tudo branco. A cegueira de não poder discernir, que se pode estender metaforicamente à cegueira espiritual. Principalmnente há a cegueira da auto-suficiência egoísta, que neste filme se vai curando, lenta mas seguramente, com a cegueira de só ver em branco. O despojamento primeiro, a entreajuda depois, ajudando a "ver" numa outra dimensão. Uma importante mensagem a passar diante dos nossos olhos, saibamos nós ver como ela nos atinge a todos.
Pelo meio, uma parábola política, onde as mulheres resolvem a guerra à sua maneira. No final, uma sensação de gratidão por um filme tão profundo e belo como este.
Fernando Meirelles aposta numa estética fotográfica muito poderosa, encena na perfeição, dirige os actores primorosamente. O resultado tem um realismo impressionante no que é (assim esperamos) pura ficção. Julianne Moore protagoniza o filme, intensa no silêncio que guarda.
Saí com vontade de comprar o livro, apesar de detestar o estilo de escrita de Saramago. Li umas passagens, reconheci de imediato a sua corrrespondência (muito fiel) no filme, mas continuo a não gostar da leitura. Felizmente o cinema dá ocasião a que se meta uma nova linguagem sem desvirtuar minimamente a ideia genial de Saramago. Genial também, Fernando Meirelles.

25A turma / Entre les murs

A realidade dum lugar oculto atrás dos muros

Entre o óbvio da insubordinação adolescente e o menos óbvio da falência do sistema de ensino, nada escapa neste filme "laboratorial".
Não haverá professor que deixe de reconhecer-se nas situações com que se depara a personagem François, muito bem desempenhado por François Bégaudeaud, autor do livro homónimo instigador deste filme. Na sala de aula, na sala dos professores, nos diversos conselhos, sempre o mesmo desconforto: ser protagonista dum sistema e ao mesmo tempo ter consciência do embuste de toda a encenação de que faz parte.
Quanto a Laurent Cantet, continua formidável na sua carreira de cronista da sociedade francesa contemporânea. É notável como preparou tudo aquilo, como sempre recrutando "espontâneos", mais ainda pela delicada escolha dos que fazem de alunos, segundo ele próprio diz uma auto-escolha, em resultado dum processo evolutivo que foi dando forma, lentamente, à turma. Poucos teriam a paciência e a coragem de seguir esse caminho, mas o brilhantismo das cenas na sala de aula demonstra como valeu a aposta. Uma autenticidade tão admirável quanto dura.
O título original, "Entre muros", é muito mais sugestivo da intenção do filme: não é a turma em si que é o assunto, ela apenas mostra uma das facetas do confronto diário; é a escola, lugar irreal onde, apesar de tudo, se cumpre uma função fundamental para a sociedade, como se reflecte magnificamente nas aspirações testemunhadas pelos pais dos alunos. Um lugar de conflitos permanentes, aqui postos a nu para quem souber (e quiser) ter olhos de ver; um lugar onde tudo seria mais fácil se se soubesse pedir mais vezes perdão (no filme todo, isso só acontece de maneira sincera uma vez), e claro, se de facto houvesse perdão. Ora, enquanto se olha para o recreio com os alunos, não deixa de encontrar-se uma familiaridade com o recreio duma prisão. Não é de facto um bom lugar.

26Amália, o filme

Muito digno

Com este filme vemos Amália bem de perto e compreendemos a grande alma que estava por dentro daquele canto. Muito bem concebido, tem um acabamento que "nem parece de filme português", as principais actrizes (Sandra Barata e Carla Chambel) são bem dirigidas: está ganha a aposta de homenagear a vida e a memória de Amália num filme condigno.
E se vale a pena ir vê-lo! É contado como um flashback a partir da noite de 1984, em Nova Iorque, onde Amália esteve para suicidar-se. E acaba onde começa, no lendário espectáculo do Coliseu de Lisboa em 1974, quando ela parecia estar a servir de "refeição" aos antifascistas da nova hora. Preenche-se com uma narrativa elegante e com excelente ritmo que nos mostra a pequenez do meio em que foi criada, a sucessão de salões, os tão falados homens, e... a música.
Sendo um filme biográfico talvez não ficassem bem algumas liberdades narrativas, mas a consistência dramática permite desculpar inexactidões que são, de resto, inofensivas. Menos bem é ver-se a miríade de actores e actrizes conhecidos que vão passando, com o ar de serem deixados por sua conta no trabalho do que deviam ser personagens mas acaba por traduzir-se numa colecção de "cromos".
Mas em suma, o êxito de bilheteira é totalmente merecido. O amor de Portugal por Amália não fica defraudado.

27007 - Quantum of Solace

Divertimento sem ambição

Agora está bem aparente a intenção de "reinventar" a personagem James Bond, não só pela continuidade com o precedente da produção (Casino Royale), mas sobretudo pelo facto de haver um envolvimento emocional com as girls, não só a já desaparecida Vesper mas as duas (logo ambas...) deste. Emoção que torna tão importante qualquer "quanto" de "consolo" (do título não traduzido). Que a vingança talvez traga?
Não é Bond, é outra coisa. Mas a frase final deixa antever a possibilidade de voltar tudo à primeira forma. Com ou sem Daniel Craig, isso já é outra questão. De resto, ele é actor para dar muito mais do que lhe pedem, fora do terreno atlético.
O vazio do argumento torna o filme algo cansativo, pois é apenas uma sucessão de peripécias espectaculares, a comparação com Bourne Ultimatum aplica-se bem, mas no pior que esse também teve. Há um tema de fundo que podia ser muito interessante (uma tentativa de apropriação de recursos naturais por uma organização criminosa) mas não é coisa que se possa desenvolver nos 007s: fica-se pelo tratamento que os scripts dos filmes pornográficos levam: é um mero pretexto.
E a "acção" em Bond é o que já se sabe... Ver o argumentista Paul Haggis envolvido nisto não é o que se esperaria. O público talvez merecesse melhor. Talvez...

Nazaré

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