Fitas de 2001
Fitas de 2002
Fitas de 2006
Fitas de 2007
Fitas de 2008
No dia em que a terra parou
Sete vidas
O Estranho Caso de Benjamin Button
Dúvida
Valquíria
O leitor

Resistentes
A Duquesa
Milk
Quem quer ser bilionário
Os guardiões
Marley e eu

Gran Torino
Dupla sedução
Traidor
Ligações perigosas
Cinco minutos de paz
A ressaca

Duplo amor
A verdade e só a verdade
17 Anos, Outra Vez!
Inimigos públicos


Fitas de 2010
Fitas de 2011
Fitas de 2012
Fitas de 2013

1No dia em que a terra parou / The Day The Earth Stood Still

Bué de efeitos especiais

O argumento tem coisas giras, com Keanu Reeves de regresso às rotinas à Johnny Mnemonic (e temos ocasião de ouvir o chinês dele), mas o que realmente se retém, e de maneira surpreendentemente eficaz, é a mensagem ecológica. Sim, porque a perspectiva de sermos castigados pelo nosso mau comportamento dispara emoções nada traiviais.
Mais subtil, e de grande interesse, é a personagem do miúdo como metáfora da humanidade. Desde o fedelho tipicamente "malcriado" que gosta de desafiar, numa expressão da sua revolta interior pela orfandade, ao seu gesto de abraçar a mãe adoptiva (Jennifer Connely), metáfora da Terra, assiste-se a um processo de conversão desencadeado na cena da ponte. Será a humanidade como um todo capaz de se converter?
E há a frase «não é o vosso planeta». Muito giro. Pode não ser uma obra-prima, pode descambar no catastrofismo de computador, mas merece respeito. E que o vivamos.

2Sete vidas / Seven pounds

América desglamorosa

Mas que bonita maneira de nos levar pelo mundo "normal", tão familiar, carregado de tragédias pessoais que ninguém nota! Paulatinamente, à medida que a acção se desenrola a acompanhar as deambulações do protagonista (Will Smith, sempre com uma expressão condoída, um desespero interior que só se explica no final), somos conduzidos ao desfecho. Tudo aquilo acaba por ter uma lógica formidável, mesmo que pelo caminho sejamos levados a pensar que é mais para o caótico. Uma das facetas mais interessantes desta fita é o ritmo aparentemente preguiçoso da acção, quando na verdade há uma urgência, uma contagem de cada minuto da vida do protagonista.
O seu destino, cuidadosamente guardado para o quase final, é-nos sugerido logo de início apenas para que possamos pressentir a monumentalidade do seu gesto. Costuma dizer-se que o melhor que se pode dar é algo de si próprio — onde o sacrifício se converte em amor, simplesmente. É desse amor que a fita trata, e da ambição de dedicá-lo a sete pessoas que o saibam receber. Tirar partido dos ficheiros financeiros e de saúde dos cidadãos para conseguir encontrá-las é uma subversão genial.
É dos filmes que dá vontade de ver e rever. Só é pena que se enganassem nas contas do livro do Génesis, mas quase ninguém repara, não é?

3O Estranho Caso de Benjamin Button / The Curious Case of Benjamin Button

Caracterização e fotografia

Este longo biopic ficcionado é uma obra ambiciosa e, no geral, sai-se muito bem: servido por um elenco de alto gabarito (onde o destaque vai inteirinho para as mulheres, Cate Blanchett a deixar mais uma vez a sua marca incomparável, mas também grandes participações de Tilda Swinton, Taraji P. Henson e Julia Ormond), por uma fotografia espectacular, uma realização atenta (onde só lamento o abuso dos closeups sobre as caras, numa evidente obsessão por patentear os efeitos da idade), e um ritmo de narrativa que não cansa, nem se arrasta (sai-se no fim sem se ter dado pelo tempo passar).
A ideia em si, baseada em Scott Fitzgerald, tinha sido explorada recentemente por Coppola, com base num texto de Mircea Eliade (pode ser coincidência, tal como o argumentista ter o mesmo apelido que o protagonista do filme de Coppola). Mas enquanto Coppola se perdeu em divagações pouco compreensíveis, Fincher traz-nos um produto escorreito, algo convencional por comparação, mas muito eficaz.
Metódico como é este filme (repare-se em pormenores como os números das portas dos quartos, a indicarem a idade física do protagonista), cai mal trair a lógica não deixando o protagonista ficar com tamanho de adulto até ao fim. Só nessas breves cenas quase finais perpassa algum embaraço, de resto é um excelente espectáculo.

4Dúvida / Doubt

Revisitando Mystic River

É natural que haja pessoas a sair deste filme desiludidas. Mas é uma excelente obra de arte, no mesmo registo que Mystic River pela ênfase que dá aos actores (Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis), embora menos ambicioso; mas há outros motivos: a realização, segura e interessante, colocando a câmara em tudo quanto é sítio e nem sempre na horizontal, desafiando o nosso olhar mas sempre a propósito; e a reconstituição da época, nos cenários, nos adereços, nas roupas, sobretudo nos comportamentos. Primoroso.
O argumento... serve bem o contraste de personalidades, acima de tudo as várias maneiras como choca, com as diferentes personagens, a protagonista (uma freira-reitora que entende usar uma disciplina férrea e um controlo absoluto sobre tudo na vida do colégio). Poderá não gostar-se da ambiguidade (servida pelo esfíngico Hoffman, é a especialidade dele), que justifica o título (e mote) do filme. Se calhar, fazer um filme onde a verdade é como um rato que se escapa sempre, será uma aposta arriscada. Pessoalmente, considero-o plenamente conseguido.
A mensagem está lá: levemos a dúvida connosco, pois ela une-nos a todos.

5Valquíria / Vakyrie

Operação militar histórica

O famoso atentado de 1944 contra Hitler, reconstituído com minúcia e aparentemente muito realista. Num meio quase exclusivamente masculino, onde em tempo de guerra as paradas são sempre muito altas, vê-se todo o tipo de homens, e todo o tipo de enfrentamentos: cumplicidades, esquivas, ameaças, fintas, devoções, denúncias, fugas, e mais, e mais... um bom retrato da guerra, se formos a ver.
Este filme mostra-nos uma perspectiva, rara em cinema, do lado do exército de carreira alemão durante a II Guerra Mundial, na ambiguidade de cumprirem o dever de militares e ao mesmo tempo repugnar-lhes a lógica política, não só a do nazismo mas também, convenhamos, a dos políticos de carreira reduzidos a uma oposição residual.
Compreende-se como o regime todo-poderoso criado pelo partido nazi - protótipo da sociedade opressiva que Orwell marcou para 1984 mas inspirava-se em algo que esteve presente bem antes, naquela Alemanha esmagadora, inelutável, maldita - gerava em todos (salvo o círculo mais íntimo do hitler) uma aspiração a poder acabar com tal mundo. E, apesar do medo das represálias impiedosas, não era difícil encontrar quem acreditasse que era desta. No filme dão-nos a entender que foi Carl von Stauffenberg quem fez a diferença. Tom Cruise assume esse protagonista, encarnando pela enésima vez a figura do herói que joga por dentro da máquina mas permanece fora da engrenagem; como sempre é muito igual a si mesmo, mas domina a acção com grande competência, conjugando na perfeição o aprumo de militar com as dificuldades físicas da mutilação.
Como operação militar, está muito bem reconstituída e só mesmo a incrível sorte do ditador a fez falhar. É sabido, não há operação militar que corra conforme o planeado. Mas, consultando as fontes históricas, os conspiradores já iam tarde demais, na sua ilusão de poderem parar a guerra em termos honrosos para a Alemanha: os Aliados já estavam na Normandia e não iriam parar enquanto não atingissem Berlim e a fizessem cair de joelhos.
A bela canção do final faz referência ao reconhecimento que os conspiradores merecem, principalmente na Alemanha, por terem mostrado às gerações futuras que nem todos os alemães eram aquilo que o nazismo queria fazer deles. Esse testemunho, conquistado à custa das próprias vidas, foi historicamente fundamental.
A realização é espectacular e cuidada, embora abuse dos efeitos sonoros. Para além de Cruise, destaque para o elenco repleto de actores respigados de várias televisões, aonde se juntam, entre outros, um interessantíssimo Tom Wilkinson (Fromm, o general oportunista), a boa presença de Terence Stamp (Beck, o general reformado), e a natação olímpica de Thomas Kretschmann.

6O leitor / The Reader

Tragédia nos tempos modernos

É precisa muita coragem para fazer um filme destes. Mistura vários temas malditos — a iniciação sexual "pecaminosa", as memórias do pesadelo da Alemanha nazi, a manipulação da Justiça, o analfabetismo — para desembocar em personagens que não se conseguem exprimir nos momentos cruciais, de tão profundamente amachucadas que a Vida as deixou.
Ralph Fiennes é exemplar, neste exercício de neurose. Tanto o vemos em horas intermináveis de leitura das palavras de outros em voz alta, com a sua voz elegante, como em infindáveis segundos de bloqueio, o das suas próprias palavras. O protagonista (que também é, numa fase mais jovem, soberbamente interpretado por David Kross) vive no fundo dum poço onde os seus dilemas emocionais o mantêm prisioneiro, incapaz de revelar-se a si e aos outros; só com a filha, quando finalmente consegue emergir e ser ele próprio, vem acima. Mas porquê naquele local, para quê a morte, a vingança?
Podiam ser outro lugar, outro tempo, outros encontros. Mas a escolha da Alemanha, na época em que o nazismo era absoluto tabu, dá-lhe uma intensidade impressionante, com a carga de culpas e remorsos que arrastam os destinos das personagens. Kate Winslet dá-nos a personagem mais ambivalente que se possa imaginar, entre anjo e demónio, verdugo e vítima, resignada ou lutadora. A esperança há-de ser o seu fim. E enquanto existe, ela é a ponte, secretamente resguardada, entre o protagonista adolescente e o adulto, ela é a personagem em que se consuma a tragédia que se conta neste filme. E a pergunta, implícita mas atrevida, é se nela isso seria injusto.
Como os grandes exemplos clássicos e neoclássicos, a tragédia deste filme é do tamanho do mundo. Os produtores Minghella e Pollack fecharam com chave de ouro as suas carreiras no cinema.

7Resistentes / Defiance

Se a morte é garantida, ao menos morrer livre

Uma história épica da II Grande Guerra, a de judeus que escolheram lutar, ou a génese do que viria a ser a capacidade bélica do estado de Israel. Excelente o contraponto entre Daniel Craig, que se entrega muito bem ao protagonista, líder duma comunidade de judeus soviéticos escondidos da perseguição nazi durante três anos, e Liev Schreiber, que tem no irmão audaz o melhor papel que já lhe vi.
Belas são as florestas da Bielorrússia, e grandiosa é a fé na sobrevivência.

8A Duquesa / The Duchess

Pálida resposta a Marie Antoinette

No final ecoa o pensamento: tanta coisa só para isto? Sabe a pouco, este telefilme de luxo. Ainda por cima não se consegue evitar a sensação de produto de consumo interno (inglês), com as afinidades que nos levam facilmente a ver Charles, Diana e Camilla sentados à mesma mesa, e que vão mais longe, pelo facto de Diana Spencer ser descendente directa do irmão da duquesa de Devonshire, que protagoniza a fita, e o casamento desta ter feito o mesmo "barulho", ao ponto de ser antecipado para fintar as multidões na data anunciada. Este será o filme onde mais obsessivamente se filma a beleza de Keira Knightley, embora nem sempre o façam favoravelmente (a maquilhagem geralmente é terrível), e onde Ralph Fiennes, na personagem do taciturno marido com mentalidades (e hábitos) medievais, diverge da norma de maneira algo surpreendente, embora sem perder pitada do seu estilo.
Não é um mau filme, até porque as actuações são de boa qualidade, apesar da escolha mal feita de Dominic Cooper para encarnar Charles Grey (o do Earl chá, precisamente). Sobretudo, compensa ver a impecável produção, que tão bem nos transporta ao tempo e ao lugar. Mas tudo ganharia por ser uma adaptação mais livre, onde se introduzissem elementos históricos que dessem mais substância ao argumento. E se a época se prestava para isso!

9Milk

Como biopic não é mau, e o protagonista é muito interessante

O trajecto político dum homem que se dedicou a livrar os homossexuais da culpa de o serem, e a promover na sociedade o respeito para com eles. Como todos os pioneiros, uma personalidade vincada, lutadora, mas também ponderada. Já em si, e no excelente desempenho do actor-instituição Sean Penn, um forte motivo para ir ver. E depois, é pela maneira equilibrada como que o mundo gay nos é apresentado, sem chocar e ao mesmo tempo dando um ar de autenticidade, o melhor veículo de tolerância. Também nisso uma homenagem ao protagonista, e um desafio para muitos.

10Quem quer ser bilionário /Slumdog millionaire

Brilhante em todos os aspectos

Obra-prima na maneira de filmar (os filmes de Danny Boyle têm uma incrível capacidade de nos envolver), na construção, no humor, no realismo (a abjecta exploração de crianças), no dramatismo. Não compreender isto é estar à margem do entendimento, e não vejo como isso possa ser possível.
E com uma mensagem muito interessante: se realmente dermos atenção ao que nos dizem, sabemos muito mais do que alguma vez imaginaríamos. Sem precisar de ir a concursos.

11Os guardiões

Banda desenhada obscura, filme chato

Mais uma transposição duma banda desenhada. Mas quem é que por cá conhece os Minutemen/Watchmen? É difícil que estes desconhecidos super-heróis dos anos 80 prendam o interesse do tuga. Agora, que as imagens são por vezes espectaculares, sem dúvida.

12Marley e eu /Marley & Me

Levezinho, mas recomenda-se

Tudo na vida dum cão, desde que nasceu até morrer. Travessuras mais ou menos divertidas, e a vida familiar de dois jornalistas (Owen Wilson e Jennifer Anniston), no que é obviamente uma autobiografia de John Grogan, autor do livro que lhe serve de base. Owen Wilson tem um desempenho muito convincente (embora haja cenas mal dirigidas, mas isso não é culpa dele). Rever Kathleen Turner como treinadora de cães é que não foi a melhor experiência.
É interessante o contraste do protagonista com a do colega que não tem família, nem cão, e passa por uma série de namoradas. A felicidade faz-se de coisas simples, mesmo que continuamente enleadas de aborrecimentos, dos quais as proezas dum cão anarquista nem são o pior.

13Gran Torino

Filme de alpendre

Na Bíblia, Jacob teve de trabalhar 14 anos até conseguir casar com a filha do patrão. Aqui, temos um jovem Hmong (Bee Vang) que não precisa de tanto para ganhar um automóvel especial.
Sendo um filme declaradamente "menor" de Clint Eastwood, não deixa de colocar-se a léguas de muita coisa com maiores pretensões que por aí anda. Revisitando temas, ambientes ou estilos de filmes mais ou menos recentes da sua lavra, aproveita para explorar a parceria interpretativa com o jovem Bee Vang, que resulta em cheio. Outro confronto muito bom é com o padre católico (Christopher Carley). Adorei ver este aceitar uma cerveja!
Sempre com um registo cómico, à conta dos expletivos "incorrectos" do protagonista, tem mesmo cenas hilariantes (a "iniciação" no barbeiro, o "resgate" da rapariga), culminando numa saída dramática, na linha de quem sabe, ainda por cima sendo pouco inclinado a optimismos, o que já não pode esperar da vida.

14Dupla sedução /Duplicity

Filme de espionagem com travo de fraude

Para além do espectáculo pouco alegre de Julia Roberts com corpo de matrona (cuja magreza de cara nos faz imaginar como não estaria se tivesse menos cuidado), pouco de novidade há para ver aqui. Clive Owen tem de ser mais criterioso naquilo em que se mete.

15Traidor /Traitor

Intenso e despojado

Das várias fitas que nos tentam mostrar uma faceta do "terrorismo islâmico", esta consegue ser a melhor até agora. Don Cheadle protagoniza o traidor, um muçulmano devoto que tenta travar uma rede terrorista infiltrando-se nela como especialista em explosivos. As inúmeras viscissitudes por que passa, tanto dum lado como do outro, a angústia dos danos (vidas humanas perdidas) que ele não consegue controlar, a luta permanente por manter intacta a sua própria humanidade, pela consciência do Mal que o rodeia e pela prática do Bem, a importância dos afectos, da compostura moral, é tudo impressionante. Muito bem secundado pelo algo typecast Saïd Taghmaoui, e por um Guy Pearce mais interessante que o habitual, é uma fita a não perder.

16Ligações perigosas /State of Play

A verdade sempre fugidia

Políticos, militares, polícias, jornalistas: um jogo de corporações. A polícia fica a ver, sem dar por nada, claro, só o talento e persistência dos jornalistas dá a volta aos esquemas, mesmo que fique sempre muita coisa por desvendar. O dinheiro que se movimenta no negócio da segurança militar faz da investigação inicialmente relacionada com o assassínio dum jovem sem-abrigo uma aventura muito perigosa para o muito batido jornalista que a conduz (Russel Crowe), sobretudo pelas ligações que se começam a estabelecer com o aparente suicídio da adjunta dum congressista (Ben Affleck). Assistido por uma jovem e espevitada colega (Rachel McAdams), cada um com os seus recursos e manhas, lá vão descascando, camada a camada, as capas com que se esconde a verdade. Juntando a isso a eliminação cirúrgica das potenciais pistas, e as pressões feitas através da chefe (Helen Mirren), é uma fascinante odisseia onde a fé em levar a reportagem ao menos perto da verdade acaba por fazer a diferença.
Uma fita muito tensa, sem quebras, liderada pela figura do protagonista (Crowe em grande estilo), com diálogos saborosos e uma arte de filmar segura, vale sobretudo pela história: os mais diversos cenários, as mais diversas personagens, as mais diversas situações, é empolgante. Mas não deixa de ter falhas, a começar pela banda sonora, onde se abusa dos efeitos, como se não houvesse confiança na capacidade das imagens de produzirem uma impressão, a que se acrescenta uma escolha de músicas pavorosa; depois, Ben Affleck não é bom no seu papel, enquanto a imensamente talentosa McAdams está subaproveitada, e o final em anti-clímax é pouco convincente. Apesar de tudo isto, uma boa fita.

17Cinco minutos de paz / Five Minutes of Heaven

O paraíso afinal é outra coisa

O Ulster/Irlanda do Norte, território de duas bandeiras; uma guerra civil com incontáveis histórias de violência e, como nos realçam a abrir, povoado pelos que carregam o fardo dessa violência, seja como vítimas ou como autores. Concebida e preparada com extremo zelo, vestida com uma simplicidade desarmante, esta fita é algo de muito bem feito.
Liam Neeson, que já representou Michael Collins, e James Nesbitt, que nos deu Ivan Cooper, têm neste confronto uma intensidade e um primor artístico que é quase tudo nesta fita. A filmagem para a televisão serve de pretexto ao encontro entre eles, e quando finalmente se encontram, dá-se o exorcismo, violento, dilacerante, mas necessário. Mais de trinta anos de remorsos que se vão, libertando-os para a vida. Muito belo.

18A ressaca /Hangover

Comédia do melhor

Fica a mesma sensação que com o primeiro American Pie: refrescante, inteligente, imaginativo, o atrevimento levado aos limites, mas sem ultrapassar o aceitável. Tudo leva a crer que vai haver Hangover 2 e até 3, e provavelmente com a mesma finura. Brilhante! Cena marada! Grandes morcões! E foi muito bem feito!

19Duplo amor /Two Lovers

A magia da reciprocidade

Sandra tem muitos pretendentes mas quer Leonard, enquanto Leonard só pensa em Michelle, que por sua vez quer a atenção de Ronald, um homem casado. E este desencontro em cadeia só se resolverá quando finalmente houver reciprocidades. Dito assim, o argumento parece algo trivial, e de facto é, não escapando de ser previsível em muitos passos; mas transfigura-se pela magnífica arte de contar (James Gray é um graaande cineasta) e pelo magnífico elenco de actores, para chegar até nós uma obra de arte de grande nível, e que sabe tocar.
Neste filme há muita coisa que é dita sem dizer-se: as duas cenas de sexo, cheias de vazio apesar das aparências; ou a expressão de Isabella Rossellini no patamar da escada, mais eloquente que qualquer discurso. Mas é preciosamente arquitectado para que se possa sentir. Da "estanha forma de vida", que quase todos temos, à simples felicidade, vai um caminho que exige coragem, perseverança, amor, e alguns silêncios. O percurso do "cachucho" simboliza isso tudo.

20A verdade e só a verdade /Nothing But The Truth

Mas qual cidadania?

É pena que digam que se baseia em "factos reais", pois há várias inverosimilhanças nesta história, no comportamento das personagens sobretudo (o realizador Rod Lurie continua a mostrar-se incapaz de lidar com pormenores). Mas a intenção principal, que é a de mostrar o duelo de princípios, entre o da deontologia profissional e o da lealdade para com o Estado, é muito bem servida, com excelente dramatização e prestações artísticas impecáveis (a começar pela protagonista Kate Beckinsale, e raramente se vê um Matt Dillon tão bem aproveitado, Vera Farmiga parece ressuscitada...).
As pressões tremendas a que todos estão sujeitos lembra Jogos de Poder/The Contender (do mesmo realizador Rod Lurie), onde também está em causa a pergunta insistente a uma personagem feminina (nesse, representada por Joan Allen), que se recusa a responder-lhe por questão de princípio. Na altura era um filme demasiado conotado com as eleições que Al Gore "devia" ter ganho, já este vem noutro contexto histórico, com uma consciência pública das restrições às liberdades cívicas dos cidadãos em referência implícita ao Patriot Act. Curiosamente, é-nos revelado que a base legal para retirar a um cidadão norte-americano um direito constitucional em nome da segurança do Estado é muito anterior ao 11 de Setembro. É este o ponto fulcral do filme, muito bem arquitectado e eficaz, e que a eloquência causídica de Alan Alda, na cena do Supremo Tribunal, resume de maneira bem completa. Decisões e tradições jurídicas afinal assentes em dúbias maiorias, fica-se a saber igualmente.
E se a tragédia de várias personagens é um preço muito alto, proibitivamente alto, para um capricho à volta de princípios; porém, se o Estado gosta de pensar de si próprio como algo que está para além dos direitos dos seus cidadãos, também fica a lembrança que o Estado assenta em princípios que teria de respeitar.

2117 Anos, Outra Vez! /Seventeen Again

Filme engraçado e história bem contada

Ai quem me dera voltar a ter... dezassete anos, e saber o que sei hoje! Ideia bem explorada, e tema até bastante interessante, o de um homem que fez uma escolha e destruiu tudo o que essa escolha significava com a sua própria negação. Muitos assim-chamados falhados devem rever-se neste personagem, quer tenham sido ou não heróis precoces na escola secundária. Talvez se convençam a tentar fazer o mesmo que ele, embora com a evidente dificuldade de não terem um duende a ajudá-los a fintar os preconceitos dos outros -- porque as aparências são tudo, para o bem duns (que ninguém conhece) e para o mal doutros (que toda a gente já conhece).

22Inimigos públicos /Public Enemies

E fez-se FBI!

Pelo trailer andava desconfiado desta fita, cheirava a banalidades. Mas acabo por considerá-la boa, não tanto pelo duelo entre "inimigos públicos" que nos vendem nesse trailer, nem pela figura de John Dillinger, mas pelo contexto histórico da guerra ao "inimigo público" durante a Grande Depressão, com o FBI a tratar de eliminar o famoso assaltante de bancos (e, de caminho, Baby Face Nelson) como primeira missão. Para isso recorrendo ao agente todo-especial Melvin Purvis, e seus métodos científicos (incluindo um novo critério de recrutamento). E até podemos ver como o crime mais lucrativo afinal andava (como sempre andará) um passo à frente, dando-se até ao luxo de ajudar o FBI para se livrar do incómodo Dillinger, bem como certamente obter contrapartidas! Não é historicamente exacto em muitas coisas, mas no essencial é excelente pretexto para visitar estas realidades do "berço" do FBI.
Também é interessante o tema do remorso sobre a morte de amigos nas batalhas que se vão sucedendo. John diz até a Melvin para mudar de carreira, como se de algum modo soubesse ler nos seus olhos o remorso. Noutro polícia (Charles Winstead, uma impressionante presença de Stephen Lang) não há nada disso, e se se julga que ele foi passar uma mensagem humanitária à namorada de Dillinger, pense-se antes que foi um meio de aniquilar-lhe as esperanças. Cruel como real.
Embora as personagens tenham todas existido, e os locais referidos sejam reais, a "dramatização" faz uma série de barbaridades, pois o FBI só começou oficialmente depois de 1934, Melvin Purvis saiu do FBI (e também deste mundo) por razões diferentes do que é afirmado (o dedo de Hoover ainda hoje se faz sentir?), e brinca-se com a cronologia à vontade do freguês. Mas há compensações para isto tudo, felizmente.
Johnny Depp adequa-se muito bem à personagem de Dillinger, geralmente cortês, geralmente galante, geralmente aprumado, dir-se-ia um quase aristocrata, e só às vezes -- só o necessário -- brutal e impiedoso. Acima de tudo ele é o herói popular por quem as multidões se deixaram fascinar (há um momento delicioso do filme a mostrá-lo). Fascínio tal que, dizem as crónicas, terá havido pessoas a ensoparem lenços e barras de saia no sangue dele como recordação! Ele não era o primeiro inimigo público, mas era na altura o nº 1 em boa parte por esta popularidade. A popularidade de Purvis também o transformou em inimigo "privado" de Hoover, diga-se...
Marion Cottillard está igualmente bem como namorada exótica, a quem o mesmo fascínio toca tão mais de perto, e pelo qual tudo vale a pena. Grande actriz, grande direcção! E Christian Bale, nesta versão de Purvis é uma máscara com um homem escondido, superpolícia, supereficiente, e no entanto perseguido pela ideia de descobrirem como é o homem. Hierático.
Notável reconstituição da época, consegue ir mais longe neste aspecto do que Road to Perdition ou Cinderella Man. Há um gosto pelos detalhes, desde o vestuário aos comoprtamentos, um ar de documentário (onde se intercalam dramas individuais, mas na essência um documentário), tudo respira autenticidade, também por isso e apesar das "liberdades" históricas dá gosto ver.

Nazaré

Home