O grupo de miúdos está absolutamente perfeito. É o "nascimento" para a adolescência, onde tudo está a ser aprendido de novo. Por isso vale a pena ver, apenas por isso, diga-se.
Esta história duma denúncia da arbitrariedade com que os brancos sulistas ainda
tratavam os serviçais negros (neste caso as serviçais, ou seja o que nos habituámos
por cá a chamar de "criadas"), praticamente um século depois de terminada a guerra
da Secessão, é sobretudo um pretexto: o de mostrar a tirania dos privilegiados, que
para se manterem como tal vivem em guerra permanente (o "agachanço" é uma cena deliciosa!)
de opressão. Há porém alguns que "não se alistam", e há os que cresceram fora desse meio—uns
e outros acabam por ser a esperança para os destituídos. O que no fundo nos é dito
é: mudem-se as personagens, os meios sociais, as épocas, e apesar de tudo a situação
é sempre e exactamente esta. Vejam-se os privilegiados de hoje.
Só que este pretexto é extraordinariamente gritante: hoje já "custa" justificar-se
a opressão a que assistimos—as tintas fortes do esclavagismo "actualizado",
na capital do estado mais retrógrado dos States, são difíceis de suportar. Mas não
deixa de fazer-se alusão a outros privilégios, como o de Nova Iorque em relação à
"província", isto é da editora em relação à segunda protagonista (Emma Stone), que
sendo da classe privilegiada em Jackson é explorada por quem não compreende o que
ela tem de enfrentar, e nem quer saber disso. É sempre ingrato ser-se charneira, de
resto...
A primeira protagonista é a mulher "órfã de filho" que, sem grandes motivos para
viver, é a primeira a "falar". É mais um desempenho supremo da excepcional Viola Davis,
nela se concentrando todas as emoções, toda a determinação, todo um frágil equilíbrio
que lhe permite continuar a viver. Neste argumento multifacetado e de muitas personagens,
a confrontação final repõe a ênfase nesta personagem que, de serviçal, passou a escritora.
Haverá coragem de atribuir o óscar de melhor actriz a Viola Davis, logo neste filme?
Fotografia, realização, montagem, actores e actrizes, tudo é perfeito nesta fita,
mas acima de tudo é a história e aquilo que nela temos de saber ver o que a torna magnífica.
Gosto do ritmo da narrativa, cada cena está muito bem dramatizada, a realização
é de mestre (como se esperaria de Soderbergh), os actores estão ao seu nível (o que
é muito bom neste elenco de estrelas). Mas a história é fraquita. É um género algo
estafado, desta vez optando-se por nos dar uma espécie de reportagem, distanciada,
neutra até, e onde se aproveita demagogicamente para lançar umas achas à fogueira da
desconfiança no governo e nas autoridades sanitárias (a desautorização do blogger é demasiado
discreta). E dispersa-se por muitos pólos, tornando as ideias demasiado superficiais ou
então subliminares, ou seja ineficazes. Seria demasiada coisa para um filme desta duração,
se tivessem feito algo mais longo talvez ficasse bem melhor. Este realizador seria
capaz, mas não quis?
O que faz suspeitar que se apostou em nomes sonantes para encobrir a falta de ideias
e de empenhamento da produção. Uma treta de filme, portanto. Opta por ser demasiado verbal,
o que lhe rouba muito do impacto, usa separadores com a contagem do dias como recurso
baratucho (ou apressado), e há muitas inconsistências. Não devíamos sentir o medo dentro
das personagens? Não devíamos sentir o alastramento da doença sem ser só por números?
Não devia explicar-se como as cidades ficaram fantasma? (e onde pára a polícia?) Não
devia morrer menos gente nos primeiros infectados? E no contraponto com a realidade:
comparadas com as revoltas de Tottenham em Agosto passado, as cenas de pilhagem/ desenfreamento
encenadas até parecem de crianças, e a "explicação" final até parece visar um branqueamento
da gripe A. Há muita coisa mal pensada, ou então pensada a fazer de nós parvos. Ainda não
chegámos a isso, pois não?
Mas o que realmente me irritou é a persistente preguiça dos legendistas, que não
traduzem SARS para pneumonia atípica, ou clusters para focos. Ou é mesmo só ignorância?
Esta história tem duas protagonistas: as duas irmãs Márcia (Rita Blanco) e Ivete
(Anabela Moreira), que embora vivam na mesma casa são como duas linhas paralelas.
E as outras personagens desta casa oscilam entre estas duas linhas, cada uma com os seus
problemas, problemas que advêm de uma só e mesma coisa — a pobreza. Cada filho de
Márcia (Cleia Almeida e Rafael Morais) pende para a sua forma de ilusão dum futuro melhor,
seja pelo romantismo ou pela esperteza, e é por eles que o enredo se enleia.
Não sendo um filme extraordinário, tem coisas notáveis e é de caras o melhor que se
viu produzido em Portugal desde há muitos anos. O profissionalismo sente-se por todo
o lado, os desempenhos são estupendos (mas o gangster de Nuno Lopes consegue ser o
mais impressionante), os diálogos (que o argumentista/realizador teve a feliz ideia de
deixar serem aperfeiçoados em colectivo) são, ao menos por uma vez, excelentes...
Mas acima de tudo o que me deixou de boca aberta é a qualidade da captação sonora, a
dar-nos a esperança que este filme faça escola e possamos esquecer a necessidade de
pôr legendas para perceber o que as personagens dizem na nossa língua!
Nazaré