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Fitas de 2009
A Estrada
Um profeta
Nas nuvens
Invictus
Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo
Um Homem Singular
Shutter Island

Deus e eu
Um sonho possível
A mulher do viajante do tempo
Atraídos pelo crime
Robin Hood
O escritor-fantasma
Origem

Eu sou o amor
O segredo dos seus olhos
Vai buscar alecrim
O caso Farewell
Entre irmãos
Wall Street: o dinheiro nunca dorme
Inside Job - a verdade da crise

Mistérios de Lisboa
Jogo limpo
Dos homens e dos deuses
O concerto
José e Pilar
A última estação
 
Fitas de 2011
Fitas de 2012
Fitas de 2013

1A Estrada / The Road

Mais que escuridão

Um filme (quase) sem animais, ou crianças, ou mulheres. Roça o subliminar, esta cruel constatação. É o que mais incomoda, bem mais do que qualquer uma das cenas macabras que desfilam, neste filme longo que nos leva com pulso seguro.
Não é de certeza um marco importante na carreira de Viggo Mortensen, e ainda menos na de Charlize Theron, Robert Duvall ou Guy Pearce. Todos estão muito bem, a direcção artística é excelente, mas este filme é tão radical no seu propósito que ninguém sai do cinema sem ter no seu íntimo uma sensação visceral de repulsa. Não é entretenimento para toda a família, e apesar disso é testemunho eloquente da importância da família (vão ver separadamente, e depois reencontrem-se, com outra esperança no olhar).
Pois, o protagonista é na realidade o filho (Kodi Smit-McPhee).
Andou-se muito desde The Day After. Mas, já que assim é, porque não se vê a fome nos olhos e nos corpos das personagens? Não dá para entender esta clamorosa falha, seria tão importante e perderam a oportunidade... Fernando Meirelles, onde estás?

2Um Profeta/ Un prophète

Universidade do crime

El Djebena, literalmente sem ler nem escrever, vai parar a uma prisão para saber como é sobreviver e, depois, tirar partido das situações no submundo do crime. Entre um cortejo onde ele segue atrás e outro onde ele segue à frente, é toda uma evolução com os melhores "tutores".
Encenações impecáveis, filmagem bem concebida, actores convincentes. Estamos lá dentro, e dentro das situações. Este é cinema do bom, mais um óptimo produto duma vaga recente de cinema vérité francês que não pára de renovar-nos o gosto por ir ao cinema.
Ao lado disto percebemos como os Estados Unidos são, por mais que nos habituemos, um país tão estranho. O primeiro Prison Break sabe a plástico. Mesmo se o preço disso forem cenas bastante cruentas, prefiro. Vérité.
Só tenho pena das personagens muito ao estilo das de banda desenhada. Demasiado a duas dimensões, mesmo o protagonista.

3Nas nuvens/ Up in the Air

O insustentável lastro dos seres

Donde é?, pergunta o comandante do avião. Daqui (ou seja, do próprio avião), responde o protagonista (George Clooney). Uma vida passada em grande parte a andar de avião e a dormir em hotéis, saltitando entre todas as cidades dos Estados Unidos. O que tem as suas exigências, e condiciona o carácter. A tal ponto, que esta personagem até faz uns cobres por fora como conferencista a pregar aos que assistem uma filosofia de leveza, onde os pertences, a família, enfim, todas as ligações com um lugar e uma situação fixa, são para descartar o mais possível. Uma filosofia de movimento, com grandes doses de cinismo.
Tudo isto numa comédia anti-romântica, que também é um drama social with a nice touch. Representados por dois momentos muito originais e especialmente bem trabalhados: o que começa com a crise de choro da psicóloga (espectacular, por sinal, esta Anna Kendrick), e as sucessivas entrevistas de despedimento, nunca repetitivas. Este é um filme que consegue ser leve e ao mesmo tempo enfrentar um problema muito actual e dilacerante. Mesmo que ambos os temas sirvam principalmente como pano de fundo para o tema do protagonista, ambos estão-lhe ligados intimamente, são parte da vida dele, no que é talvez a melhor personagem que Clooney já teve. E que ele desempenha com muita convicção (só de vê-lo na cena de homem para homem com o noivo, chegaria para tirar-se o chapéu), impecavelmente dirigido, não abdica das toneladas de charme e até cede à tentação de repetir certas rotinas dos anúncios do Nespresso. Se depois da experiência com os irmãos Coen qualquer coisa seria melhor, ele está aqui mesmo em grande. E muito bem secundado pelas duas mulheres (a já citada Anna Kendrick e Vera Farmiga).
As imagens do terreno, passando por cima das nuvens, o vol d'oiseau que pode fazer de qualquer viagem de avião uma descoberta constante (ou deixar indiferente quem já está habituado), pontuam este filme cheio de vivacidade, onde é muito evidente o papel da montagem, às vezes acrobática a um ponto de tornar as coisas um pouco confusas. Mas Reitman, para além de fazer filmes com substância, é um bom artista do cinema.

4Invictus

Homenagem a Nelson Mandela

Raramente um político consegue ter a dimensão, a coragem, e a determinação de fazer vencer valores mais elevados dos que costumam prevelecer na política. Neste caso, Mandela serviu-se de toda a simbologia da selecção sul-africana de rugby (os Springbocks) para transformá-la dum elemento de separação social num denominador comum e, de permeio, conciliar, galvanizar, reconstruir. Estava-se numa África do Sul desgastada pela propaganda mundial anti-Apartheid, onde a desmoralização dos africanders e o que se assumia ser a natural vingança dos negros, ameaçavam ainda afundar mais esse grande país com para cima de 40 milhões de habitantes. E começou logo pelos guarda-costas do presidente! Muito interessante. O espírito de Gandhi não pode ter estado longe... Acima de tudo, vale a pena ver isso neste filme, mais uma boa obra de Eastwood, secundado por dois grandes actores norte-americanos, Morgan Freeman e Matt Damon.
Também há as imagens dos jogos, afinal Hollywood nunca se deu ao trabalho de filmar o rugby, como seria? Nesse capítulo fica um pouco aquém, pois se por um lado a proximidade dos corpos nos traz bastante perto destas batalhas de gigantes, por outro as movimentações são pouco espontâneas, não mostram a batalha, a confusão, o espírito de combatividade, de sacrifício, do valor da equipa. Sobretudo as corridas, são tudo menos espontâneas, as placagens ao que faz de Lomu mais parecem as que se fazem no futebol americano, enfim... e mesmo assim adorei ver esta representação dum jogo que é maravilhoso, e que depois daquele campeonato começou a conquistar os corações dos negros da África do Sul.

5Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo/ The Imaginarium of Dr. Parnassus

Um adeus a Heath Ledger

No seu reencontro com o tema teatro, que parecia ser-lhe tão caro, Ledger volta a protagonizar, com imenso charme, versatilidade e uma presença como era só dele. Que perda tão grande...
O mais irónico é que o melhor deste filme, que são as visões fantásticas de Terry Gilliam, nas cenas para lá do espelho do insondável Parnassus (Plummer), já não contarem com Ledger. A volta por cima foi dada de forma brilhante, com o tão amável e adorável concurso de Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell.
Que homenagem tão bela...

6Um Homem Singular/ A Single Man

Olhar

Quase obsessivamente, Tom Ford filma rostos, e pormenores de rostos, numa proximadade que invade o íntimo (físico) das personagens. Parece-nos que a câmara quase lhes toca, que se senta ao colo delas. E nessa asfixiante proximidade, ser actor talvez se torne ainda mais exigente. O protagonista (Colin Firth) é extrordinário, em todos os ângulos, em todas as posturas, em todos os momentos. O filme é todo ele, para ele, e vem-nos dele. Estar à altura do desafio deve ter sido uma grande realização para este actor. Monumental!
A acção não chega a durar 24 horas, embora beneficie de alongados flashbacks. Filma um dia muito especial dum homem só (single quer dizer isso), esvaziado pelo fim trágico duma relação de 16 anos. Sabemos desde logo o que está para acontecer, e como a suposta cena final está a ser preparada. Mas o final transcende, desalinhadamente, em significado e impacto, tudo o que se podia prever.
Um filme sobre a vida, um exercício cinematográfico cativante, um actor formidável.

7Shutter Island

Labirintos da nossa paciência

Interessante jogo psicológico, filmagens virtuosísticas, com uma fotografia excepcional, um leque de actores extraordinário (Di Caprio, Ruffalo, Kingsley, von Sydow...). Mas há qualquer coisa que falha aqui, os labirintos da aparência vs. realidade ficam bem aquém dos feitos de outros filmes (Matrix, Uma mente brilhante), e com o tempo que leva a desenrolar-se acaba por ficar chato, deixando para o final, quando tudo se revela, já bem pouca paciência para ver. Scorcese pura e simplesmente deslumbrou-se com a série de filmes de elevado impacto que fez nos últimos anos, caindo naquilo que em inglês se chama self-indulgence, ou seja, ficar com a mania. A sequência do forte é um rol de truques baratos e tiques que, para mim, deu a machadada final neste filme assim-assim. De nada valem os arrojados e tão belos jogos de câmara que faz, sem dúvida uma consequência de ter filmado os Stones como fez.

8Deus e eu/The Answer Man(Arlen Faber)

Deus em nós

Um tema que pode ser muito complicado, e que é tratado com extrema elegância e sem vacilações. Logo aí fica uma indicação da qualidade desta fita. Tudo o resto está muito bem, mas o que me seduziu mesmo foi este extraordinário argumento. O tema, para mim, são os mitos que criamos (ou que outros criam em nós), como pesam nas nossas vidas sem pensarmos em aliviar-nos deles. A forma escolhida é acompanhar um autor famoso (que tem 10% de Deus, que conceito!), a viver escondido, e pela gente normal que em geral se fascina com o mito da fama. É o homem das respostas, que enchem o livro que o fez famoso. Mesmo que as respostas que ele dá sejam de facto brilhantes, não ajudam nada - como os livros de "auto-ajuda" da vida real. A sedução das palavras é uma coisa, a solução que pretendem oferecer é algo de muito diferente. Porque a magia das palavras é um mito em si mesmo, tal que acabam por não ser entendidas como deviam. Uf, como se poderia continuar por aí fora... E contraponto com o ofício de endireita é aquilo que mostra ao protagonista que a vida pode ser bem mais simples, o ponto de partida para ele ir a caminho de ser uma pessoa normal...
Esta obra-prima de fineza termina com um homem e uma mulher solitários sentados num café, num contexto em que percebemos: do que é que estão eles à espera para aproximarem-se? Mas o ponto mais alto, a culminação desta hábil trama, é o longo silêncio do protagonista, para uma pergunta com resposta óbvia. É nesse silêncio (nunca pensei que gostaria tanto de ver Daniels a actuar!) que se contêm imensos pensamentos e perplexidades, num flash que tudo esclarece sobre o adorável filho da quiroprática (Lauren Graham).
Esta fita levou quase 2 anos a cá chegar, mas já que veio é de aproveitar para saborear, enquanto estiver nas nossas telas.

9Um sonho possível/The Blind Side

Uma jornada de compaixão

É uma história que merece ser contada: como um rapaz cheio de mansidão e uma mulher com o melhor sentido de caridade no seu coração se salvam mutuamente, a ele duma vida de miséria e possivelmente de crime, a ela duma rotina dourada mas apenas materialista. E como isso contagiou tanta gente.
Com todos os ingredientes de autenticidade dum relato biográfico, a história está muito bem contada, não evitando os detalhes mais desagradáveis nesse percurso, o realismo das dificuldades que pareciam inultrapassáveis, a presença contínua do fracasso. Muitas lições a aprender, para quem quiser vê-las.
Sandra Bullock está ao seu sempre alto nível, mas não é menor o brilho (contido) de Quinton Aaron, a perfeita incarnação dum miúdo sem esperança ou medo ou queixas, numa palavra: enigmático.
Boa banda sonora.

10A mulher do viajante do tempo/ The Time Traveler's Wife

Mais uma etapa na carreira de McAdams

Rachel McAdams não pára de evoluir para os mais diversos papéis, sempre com grande sucesso. Neste filme reinventaram-lhe a beleza, e em todas as cenas mantém intacta aquela intensidade que lhe é habitual. Só para acompanhar este talento já vale a pena ir ver.
Eric Bana vai bem, e a sua relativa inexpressividade até que encaixa lindamente com McAdams. Quanto ao resto... bem, é uma fantasia engraçada, um pouco desconcertante mas que se aguenta bem, e que explora um mote de eterna fidelidade que até é bem bonito. Os efeitos especiais (desaparecimentos e reaparecimentos) são muito convincentes.

11Atraídos pelo crime/ Brooklyn's Finest

Três polícias e um ladrão

Um polícia infiltrado entre bandidos (Don Cheadle), mas ligado por amizade com um deles (Wesley Snipes); outro que está quase na reforma, desiludido, alcoólico, desprezado pelo sistema (Richard Gere); outro das operações especiais, obcecado em melhorar as condições de vida da família (Ethan Hawke). Quatro actores de estilos muito diferentes, imprimindo nas cenas em que participam um cunho muito próprio, que a realização cuida de aproveitar da melhor maneira.
É um filme de homens desesperados, no caso dos polícias por causa da Polícia, sendo este admirável argumento uma bem estudada compilação de motivos para o desespero. A dualidade entre o título original ('os melhores de Brooklyn') e a versão portuguesa ('atraídos pelo crime') resume os pontos de vista pelos quais estes polícias podem ser vistos. São os protectores da Lei, teriam de ser os melhores, mas com o que se vê, perante a realidade dúbia e traiçoeira que rodeia estas personagens, não dá para aguentar uma postura moralista. Ser polícia é uma honra, um serviço do bem que tão necessário é, mas a Polícia atraiçoa os polícias, que nos seus quotidianos sacrifícios se devem questionar sobre a (in)justiça que os rodeia... na retaguarda.
Filmado como três filmes em paralelo, conflui para uma cena final ao melhor estilo das grandes tragédias, onde a bala dum polícia irá matar outro polícia. Esta fita é uma experiência empolgante, excelente na realização como na direcção de actores, dando um ar de grande naturalidade a tudo. E, em si mesma, esta história faz bem mais do que apenas entreter.

12Robin Hood

Longstride e os mosqueteiros

Esta variante dos antecedentes da lenda do herói de Sherwood está bastante digerível como ideia (e, no caso da lenda em questão, vale tudo...), a filmagem de Ridley Scott é sempre uma maravilha de ver-se, e o naipe de actores (Crowe, Blanchett, Von Sydow, Isaac, Hurt, Strong) irrepreensível. Mas a história em si é fraquita, e a batalha final sabe a pouco.
Valha, ainda assim, um curto regresso do terrível Gladiator na cena da emboscada, e a curiosa digressão pelas origens da maçonaria, que assim sugeridas em contexto histórico talvez seja uma estreia para Hollywood.

13O escritor-fantasma/ The Ghost Writer

Líderes políticos pré-fabricados

Qualquer semelhança da personagem Adam Lang (Pierce Brosnan) com os Blair, os José Manuel Barroso, os Aznar ou tantos outros meteóricos líderes de governos europeus (e não só), que parecem telecomandados pelos States... é mera advertência. O que poderiam ser anónimos membros de alguma corporação profissional vêem-se um dia, sem terem noção que é por um agente da CIA que o fazem, a passarem a ter a ambição de chegarem a líderes políticos. Gente muito especial, vocacionada para captar as atenções da opinião pública enquanto o "resto" se desenrola nas suas costas, quantas vezes sem eles próprios terem noção do que lá se passa. E sempre sem problemas, "alguém" se encarrega sempre de velar por eles. É o que este filme de Polanski se dedica a mostrar-nos.
Polanski tem o condão de ser inimitável. Nem sequer a si próprio ele imita, e no entanto há em cada filme que ele faz uma marca de mestre, algo de único, que nos leva a perguntar: quem é o realizador?
O papel de ghostwriter é algo de ingrato, na vida real como em Ewan MacGregor. É um peão obscuro, para ser ignorado ou aniquilado. A ele não compete de todo desvendar a verdade. As folhas espalhadas, a rematar o final, são a metáfora do esforço em vão. Bem, este filme faz divagar, mas só depois de acabar, até lá agarra-nos implacavelmente. É de mestre!

14Origem/Inception

Donde vêm as nossas motivações?

Achei a fita genial. Pode ser fantasia o que ali ouvimos/lemos, mas é como as lendas: tem um fundo de verdade. Uma verdade muito real, que só existe nos misteriosos mundos dos sonhos; muito profunda também, pois é a realidade do que nós somos, do que nos leva a fazermos o que fazemos, por sermos aquilo que somos.
Basta dizer que uma sessão deste filme não me chega, preciso de revê-lo, mas quero primeiro continuar a pensar nele, a pensar nas minhas próprias motivações, para que possa aproveitar bem uma segunda oportunidade. Há aqui muita coisa desconcertante, mas não me refiro aos jogos com o tempo e diferentes "níveis" da mente, refiro-me ao que significa sermos levados até ao fundo de nós mesmos, desta vez pelos sonhos. Matrix (o original), e antes dele Strange Days, já nos fizeram coisas semelhantes, e são a maravilha que se sabe.

15Eu sou o amor/ Io Sono l'Amore

Parece mais do que é

Filme inteiramente motivado pela protagonista, Tilda Swinton, uma excelente actriz que não deixa aqui de dar o seu melhor, no papel duma bela signora de origem russa. Com uma fotografia de rara inventividade e originalidade, e mestria fora do comum, uma realização impecável. Uma banda sonora também fora do comum, quase sempre de notável influência na vivência do filme, um guarda-roupa cheio de significado, vistas tanto de interiores como de exteriores riquíssimas. E a comida, quase que se saboreia!
Mas, no meio de tudo isto, não é de estranhar que muitos saiam do cinema decepcionados. É uma história fraca, mal congeminada, com má ligação entre os diversos episódios, não convence nem um pouco, não tem conteúdo. Até a música se torna execrável na tentativa de sublinhar a cena culminante do final. Pena, porque as enormes ambições estéticas desta produção mereciam um conteúdo mais digno. Há muitas telenovelas que conseguem dizer mais num par de episódios.

16O segredo dos seus olhos/ El Secreto de Sus Ojos

Inspiração é isto

A Academia de Hollywood dá todos os anos um óscar para o melhor filme estrangeiro. É a mesma coisa que dizer que só assim um filme de fora dos States é premiado como filme. E, ao vermos o vencedor de 2009 O segredo dos seus olhos, bem se percebe como este paternalismo é absurdo, isto para não falar do ridículo que é os todo-poderosos de Hollywood a precisarem de proteccionismos.
Não tenho dúvidas em considerar esta a melhor produção de 2009. Sem ter visto tudo, obviamente, e foi um ano aliás algo pobre por bandas dos States, mas o que importa é que, melhor que isto seria praticamente impossível. Nem vale a pena andar pelos aspectos técnicos ou artísticos, que aliás estão à altura do riquíssimo argumento: vale primeiro que tudo por uma narrativa densa mas perfeitamente inteligível, que se espraia por mais de duas horas sem que alguém pense no relógio (digo eu); onde cabem momentos de delicioso humor numa trama histórico-política que marcou violentamente a Argentina em tempos não muito recuados; onde uma paixão autêntica se deixa reprimir pelas tenebrosas circunstâncias dum assassinato, e respectiva investigação sempre votada ao desespero; onde, enfim, personagens carregadas de significado nos fazem viver as imagens de tal maneira, que não as vemos numa tela a 2 dimensões, presenciamos.
Eis, pois, uma obra-prima que nos lembra ser o cinema uma arte de artes que, nas mãos de quem tem este talento, pode maravilhar e também entreter. Uma arte que exige: em quem a concebe e executa, a capacidade de dizer muita coisa, para a qual não há tempo de verbalizar, através dos pormenores; em quem a vê, a sensibilidade para traduzi-los nesse dizer. Basta ver como o público se deixa estar sentado a olhar, longos segundos, para o écran onde vão desenrolando os genéricos finais: é um momento colectivo de prolongamento do sabor, de reflexão, de rendição, coisa que poucos filmes chegam a merecer. E ao fim de duas horas de fita!
Sim, há os olhos das personagens, as interrogações sobre os olhares, sobre a verdade que se possa vislumbrar neles. Neste filme há muitos olhares, muitas interrogações. Mas também mostra muitas prisões: não só os cárceres que são visitados (poucos), mas as prisões a que cada um está submetido: as do desejo, da bebida, do orgulho, do exílio, da vingança, do estatuto, da violência mortal. Todos conhecem a sua própria prisão, o que (n)os distingue é a maneira de procurar a libertação. E há de tudo um pouco, neste grande filme!

17Vai buscar alecrim/ Daddy Longlegs

Viver em Nova Iorque

Tudo o que Hollywood se esforça por disfarçar àcerca dos States aparece aqui: a mediocridade do cidadão comum (que há em todos os países), o ambiente de egoísmo dilacerante, a incapacidade de comunicar. Miséria, seja moral ou material, uma após outra.
Não sendo um documentário, funciona como tal. A parte ficcional é a de um homem, vulgar em todos os sentidos, que trabalha num cinema como projeccionista. Nada há de recomendável nele, embora no mundo que o rodeia (o padrão por que teria de reger-se) até seja um bom tipo. Diga-se de passagem, o actor Ronald Bronstein tem uma presença marcante.
Nada neste protagonista, nos seus actos, no seu dia-a-dia, é consequente -- excepto os filhos, e é por ver neles algo de bom na sua vida que ele decide desafiar a lei. Um gesto comovente, embora tudo corra de forma atabalhoada e acabe (provavelmente) por ser também inconsequente. Em resumo: algo que vale a pena ver sob mais do que um ponto de vista.

18O caso Farewell/ L'Affaire Farewell

Uma excursão pela URSS de Brejnev

Para além do interessante facto histórico (onde o oficial russo representado por Kusturica teria sido Vladimir Vetrov) e da excelente dramatização, é a direcção de actores, e o trabalho dos actores, o que mais impressiona. É um gosto ver esta fita.

19Entre irmãos/ Brothers

Segredos de guerra

É natural que, vendo-se o trailer, se vá à espera dum caso de infidelidade (inconsciente de sê-lo) que as filhas do homem traído apoiam. Não passa duma nojenta manipulação, tirando as cenas do seu contexto; e com toda a honestidade, sai um filme até bem melhor.
Há vários temas, mas o central é o da vítima de guerra. Desde os que morrem aos que sobrevivem, assim como aos que lhes pertencem. Vemos a guerra que um pai que esteve no Vietname julga ter que fazer, para converter o filho mais novo no que este não é; e vemos a que o Tio Sam julga ter que fazer, para converter o Afeganistão no que não é -- vítimas em escalas diferentes, mas com o mesmo tipo de sofrimento. E em nome da sobrevivência, mesmo o impensável se torna possível.
Nesta fita os actores principais são reinventados através destas personagens: Tobey Maguire na dupla face dum fuzileiro cuja bravura será posta duramente à prova, nos olhos expressões como nunca lhe tínhamos visto, Jake Gyllenhaal na dupla fase dum inadaptado que encontra na cunhada e sobrinhas uma porta de saída, magnífico nos silêncios desta personagem, e Natalie Portman no duplo encontro com os dois irmãos, tão próximos e tão diferentes (invulgar beleza tão bem posta em relevo, numa actriz já mais que confirmada). O resto do cast é estupendo, com Sam Sheppard e Bailee Madison (a filha mais velha) em grande destaque (em relação a Clifton Collins Jr., melhores papéis virão).
Os ecos de O caçador são bem evidentes, e estão bem actualizados. E, embora nada espectacular, o final é muito bonito. A realidade é que o argumento seria demasiado bom para Hollywood, e no início percebe-se que é uma adaptação dum filme dinamarquês (Brødre, de 2004, com Connie Nielsen). Em suma, apesar das comparações com o original poderem ser desapontadoras (diz-se), não deixa de ser uma estupenda elaboração sobre o poder destrutivo que um segredo pode conter, e da necessidade de libertação desse segredo (e do perdão). Sendo fiel ao original, está bem feito, e vale mesmo a pena ir ver.

20Wall Street: o dinheiro nunca dorme/ Wall Street: Money Never Sleeps

Interessante, mas com algumas tretas

Voyeurismo é assistirmos como se pudéssemos sentir-nos na pele dos verdadeiros protagonistas. E o mal que vejo nesta aventura através dos terríveis meses de 2008 em que a crise financeira se transformou no desastre económico que hoje vivemos, é o voyeurismo. Porque os voyeurs nunca sentem o que presumem poder sentir, e precisamente é o que se tornam argumentistas e realizador, mostrando que não percebem quem é a gente que querem retratar, limitando-se a traçar caricaturas como se duma banda desenhada se tratasse. Qualquer um que ande no mar de tubarões da finança dirá que não é nada daquilo. Pode dizer-se que o apelativo no cinema é o voyeurismo que nos dá, o problema é quando se trata de factos históricos e da pretensão de documentário. Se, pelo contrário, ao menos se ficasse por uma banda desenhada... é claro que Gecko (Michael Douglas) já era uma personagem de história aos quadradinhos, mas aqui metem-no num filme pseudo-realista e destoa.
Oliver Stone não faz maus filmes, e se descontarmos o voyeurismo e mais algumas tretas que se acrescentam pelo meio, este filme é estupendo. Josh Brolin arranca mais um magnífico "vilão", Shia LaBeouf e Carey Mulligan dão-nos um par formidável, e a direcção de actores é excepcional (adorei especialmente a cena nas escadarias no Metropolitan, entre tantas outras provas disso), há ainda o ritmo das cenas, o próprio gozo das imagens e do som, enfim... é de mestre.
E há a outra história, a dos 100 milhões de dólares para subsidiar uma pesquisa científica que promete resolver os problemas da energia no mundo. A frase "enquanto o preço do petróleo estiver alto, arranjo-lhe esse dinheiro" pode passar despercebida, mas revela-nos o custo astronómico que as sociedades dependentes do petróleo têm andado a suportar à conta dos bandos de especuladores. E esta história não fica por aí: é um desfilar de estratagemas que o ex-corretor vai depois tentando arranjar, no que afinal não passa dum jogo que, em vez de ser no casino, é com o dinheiro que outros pouparam, mas com o mesmo de viciante e de imoral, mesmo quando se disfarça com uma capa de filantropismo. Esse é um tema muito rico, ainda mais interesante, ... e nada voyeur.

21Inside Job - a verdade da crise

Este sim, merece ser chamado um clássico

Os malefícios da ideologia não vêm apenas dos anti-capitalismos, vêm (e de maneira não menos terrível) do próprio capitalismo. A mão invisível de Adam Smith é uma imagem lendária, mas com um certo limite de verdade, para além do qual se torna numa ideologia extremamente perigosa. Este filme mostra como é que essa lição foi aprendida nos nossos dias.
Embora classificado de documentário, "A Verdade da Crise" é melhor vista como uma peça de jornalismo de investigação, notável na informação que reúne, notável ainda mais na maneira como nos é mostrada, no ritmo e na acutilância, e com o bónus da excelente locução de Matt Damon (sintomático que se diga que é uma ousadia ele ter aceitado fazer este papel!).
Criticam este filme por ser tendencioso. Com tanta gente prejudicada não há que ser imparcial, muito menos abafar a indignação. Sobretudo ficando-se a saber que a falência que despoletou tudo não era inevitável! Só pareceu inevitável a quem, na tão característica falta de horizontes dos norte-americanos, persiste em pensar no mundo dentro dos limites dos Estados Unidos ou, pior ainda, dentro dos limites da Wall Street. Embora no Facebook possamos ver o que fazer (
http://www.facebook.com/insidejob?v=app_4949752878), isto já está a ser feito: a China vai comê-los a todos.

22Mistérios de Lisboa

Tem mérito, mas não é uma obra-prima nem de longe

Quando se dá pelo tempo passado no cinema, é mau sinal! E o que me calhou foram quase cinco horas, apenas com um intervalo. Fiquei com a sensação que resolveram não deixar de fora um só diálogo que fosse, santa paciência! Uma adaptação para cinema não é isto... Já para ficar depois em episódios TV, talvez se justifique um pouco mais o detalhe novelístico (mas só 2 episódios???). Ver sugestão abaixo.
Por muito belas que sejam as composições, os movimentos de câmara, a montagem, a fotografia, bla-bla. São belas sim senhor, o realizador está de parabéns, os actores também, mas não me façam sofrer. E toda essa beleza vai perder-se na TV generalista, está tudo desencontrado. Recomendo que comprem os BluRays e programem lá em casa uma série de 5 episódios. Assim dará para gostar. Eu talvez o faça.

23Jogo limpo/Fair Game

Sem dúvida um bom filme, mas desigual

O melhor: excelente direcção de actores, com Naomi Watts e Sean Penn dentro do seu melhor (só isso já bastaria...), e a primeira metade do filme a desmontar o processo de criação duma mentira histórica (e onde por uma vez os agentes da CIA não são os incompetentes).
O pior: a metade final, centrada na dramática luta à volta de expor-se ou ocultar-se a dita mentira, que é tratada atabalhoadamente e tem um cunho político-partidário manipulativo, que me desagradou. Clinton ou Obama teriam feito o mesmo.

24Dos homens e dos deuses/ Des hommes et des dieux

Perante a visão do martírio

Eu prefiro ver neste filme a revelação de como estes homens se tornaram mais próximos da sua missão divina na terra, perante a possibilidade do martírio como parte da escolha de vida que haviam feito. Se há um apelo a sair da zona de conforto, aqui o vemos de maneira bem radical! A cena de reunião em que finalmente votam sobre ficar ou não no mosteiro do Atlas (argelino) dá ocasião a cada um de expressar o seu próprio percurso interior e é rematada por um discurso profundo sobre a dimensão espiritual da nossa existência. Filme invulgar, e para vê-lo até faz pouca diferença ser-se crente ou não-crente.

25O concerto/Le concert

Do rasteiro ao sublime

O burlesco povoa de maneira às vezes exasperante este filme, até que um milagre se dá, e tudo fica maravilhoso. O realizador Mihaileanu traz, na sequência do estupendo Vai e vive, uma nova obra-prima que nos convida a lembrar o que há de sublime em todos nós, através da música clássica.
Os partidos comunistas, por um lado, e uma Rússia que hoje desdenha a cultura, por outro, são impiedosamente ridicularizados. Na Rússia onde se viveu (já bem antes da revolução de Outubro) uma tão rica tradição de talento, na música como noutras artes, vemos onde trabalham ou meramente sobrevivem os antigos músicos (ficcionados) da orquestra Bolshoi do final dos anos 70, e como eles transportam consigo para Paris essa mesma vulgaridade. É abjecto. O tal milagre só acontece quando algo, que aqueles músicos conheciam como ninguém, ressuscita no éter do teatro Le Châtelet. A memória daquela época onde, com o seu maestro, acreditavam em tocar o sublime, que (na circunstância) o sublime Tchaikovskii inspirava. Porque, como se diz a certa altura, uma orquestra é como o mundo, e durante o concerto vive-se aquilo que as promessas políticas nunca cumpriram nem poderão cumprir. Por muito que estas sejam inspiradoras, não estão à altura. Mas a arte, pode estar. E as lágrimas que correm são da alegria de sentir-se pairar muito acima deste mundo. Temos a expressão dos belos olhos da concertista (Mélanie Laurent) como imagem duradoura a recordar.
A emoção que se atinge durante o concerto é o melhor testemunho do que a arte faz pelo Homem. Com um som de extraordinária qualidade, uma montagem fantástica, e uma música cuja beleza não é reconhecível em palavras, espero que muitos que não conheciam a música clássica se deixem tocar por este magnífico... testemunho.

26José e Pilar

A vida de um casal muito, muito belo

Quem atinge a idade dos 80 anos e permanece lúcido tem de certeza algo da sua experiência que nos pode ensinar coisas importantes; se essa pessoa for inteligente e culta, ainda mais se pode esperar, mas se para além disso for alguém que fala do que sabe com a liberdade de quem sabe o valor de dizer-se o que é importante, então as palavras até podem ser pouco abundantes, mas são um verdadeiro tesouro de sabedoria. Assim era José Saramago na altura em que se fez este filme. E Maria Pilar del Rio, a sua mulher, una com ele nessa sabedoria, a irradiar ela própria para quem saiba estar atento e escutar. Nada que os impedisse de discordarem politicamente, mas no que respeita à vida àquilo que mais vale para qualquer um de nós...
O tema principal é a vivência deste casal, o amor que os une e o nível de entendimento que tornou a sua união indissolúvel. Daí a importância do episódio da Montaña Blanca. Daí a tão grande importância de Saramago ser continuado. As obras que nascem do amor são mais perenes. Um artista não merece morrer, e ele ainda vive. Este filme surpreendeu-me, não contava que fosse tão bom. Até nisso Saramago teve sorte... O trabalho de Miguel Gonçalves Mendes não só documenta, tem a arte de levar-nos pela mão, sem esforço, durante mais de duas horas. Tem originalidade, tem ousadia, tem muita classe.
Mas não posso deixar de lembrar-me da perturbação de ver as legendas em Português que alteram frequentemente o Português das personagens (e que escrevem Montanha Blanca!!!!), não sei se porque quem "redigiu" as legendas tinha mau ouvido, ou se por ter achado que estava "incorrecto". Não se faz!

27A última estação/ The Last Station

Uma caricatura levezinha, como convém

Para quem veio a contar com a faceta de Tolstoi que o foi absorvendo mais e mais na tentativa (para muitos sempre utópica) de acender na humanidade a aspiração à fraternidade, à comunhão sem posses, à libertação espiritual, à verdade como bem universal (ao amor), este filme é um embuste. Fazem 100 anos que Tolstoi morreu, mas a homenagem cinematográfica ficou por fazer-se. Todo o seu legado "anarco-cristão" (que lhe valeu ser excomungado pela Igreja Russa), em fragmentos dispersos que a par da representação dos "tolstoianos" e a demonização da figura de Cherktov roçam a caricatura, dilui-se na empolada disputa entre a mulher de Tolstoi (Helen Mirren / Elena Mironova) e o seu marido mais o editor Cherktov (Paul Giamatti). Não é justo, mas é concerteza mais "comercial", ou no que realmente importa... menos polémico.
Boas encenações, bons encadeamentos, mas o argumento é um logro. E sobre a qualidade da representação, também é duvidosa: quem é inglês fá-lo à inglesa (mas James McAvoy continua a marcar pontos na sua extraordinária inteligência e versatilidade), e quem é americano fá-o à americana (mas Giamatti é simplesmente estupendo). Nem sequer um esforço com a uniformização das pronúncias... o que é que andava a fazer o realizador? Mas que confusão!

Nazaré

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