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O tipo selvagem

Muitos dos caracteres observáveis nas populações naturais são praticamente constantes entre os indivíduos de cada população, indicando um certo grau de homogeneidade pelo menos a nível fenotípico e também, onde se venha a analisar, genotípico. Verifica-se, de facto, que em muitos loci existe um alelo extremamente frequente, enquanto outros alelos são muitíssimo raros. Interpreta-se este tipo de situação como sendo fruto de uma selecção (natural) tendente a eliminar os indivíduos que, em consequência de serem portadores de certos alelos, têm uma reduzida viabilidade ou fertilidade, dentro das condições de subsistência da respectiva população. Esses alelos "desfavoráveis" são eliminados com os indivíduos seus portadores por estes se reproduzirem menos e irem-se tornando cada vez mais raros.

A medida da capacidade relativa de um determinado genótipo de produzir descendência fértil na geração seguinte é o fitness, cuja tradução do inglês poderá ser "adaptação". Genótipos melhor adaptados a um determinado ambiente tendem a tornar-se mais frequentes à medida que se sucedem as gerações, enquanto se dá a diminuição da frequência dos restantes.

Exemplo

Genótipo
AA Aa aa
zigotos: geração 0 (Hardy-Weinberg)
15 30 15
p = 0,5 q = 0,5
gâmetas participantes
50 66 4
fitness
WAA = 1 WAa = 0,66 Waa = 0,08
zigotos: geração 1
29 25 6
p = 0,69 q = 0,31

O efeito do fitness diferencial favorecendo o gene A em detrimento do gene a patenteia-se nas frequências dos genes nos zigotos após uma geração. Note-se que WAa é inferior a 1, apesar do maior número de gâmetas produzidos pelos indivíduos deste genótipo no seu todo, porque o fitness diz respeito a cada um deles (50/15 > 66/30).

No entanto, o fitness de cada genótipo é sempre relativo a um determinado ambiente: não é forçoso que o genótipo de fitness máximo numa população o seja noutra população em que os factores abióticos e bióticos são muito diferentes; mesmo dentro de uma só população, se o ambiente em que está inserida não for constante (por exemplo devido a oscilações entre períodos de seca e períodos de abundância de água), também o fitness máximo pode corresponder a um genótipo em certas condições e a outro genótipo noutras condições.

Exemplos

a) Em 1938 foram publicados dados (referidos por Strickberger) documentando as diferenças de sucesso adaptativo entre variedades de cevada: a mesma mistura inicial de sementes de 10 variedades foi semeada em 5 localidades diferentes dos Estados Unidos, de climas muito diversos; todos os anos eram feitas as colheitas, e sementes apenas destas colheitas eram utilizadas na sementeira do ano seguinte, na respectiva localidade. Após um período de 4 a 12 anos foram separadas 500 plantas para identificação das variedades ainda existentes (a identificação não seria ambígua em virtude da quase exclusiva auto-polinização da cevada). Os resultados foram:

locais:
clima:
Virginia
continental húm.
Minnesota
cont. seco
Montana
alpino
Washington
atlântico
California
mediterrânico
total
absoluto  relativo
variedades: A 446 83 87 150 362 1128 45%
B 13 15 58 1 1 88 4%
C 6 14 25 5 0 50 2%
D 11 27 37 3 8 86 3%
E 4 0 4 6 27 41 2%
F 4 4 241 276 65 590 24%
G 4 305 19 30 34 392 16%
H 11 50 8 23 2 94 4%
I 0 0 0 5 1 6 0%
J 1 2 21 1 0 25 1%

As variedades apresentaram aptidões totalmente diferentes de local para local, havendo uma (A) com uma adaptabilidade bastante geral, outras (F e G, e já menos a B e a H) com um sucesso adaptativo mais "especializado", e outras que na presença de competição eram geralmente mal-adaptadas (em especial a I). Não é que nenhuma fosse capaz de aproveitar as condições disponíveis em cada um dos campos onde foram semeadas, mas no contexto competitivo serão aquelas que melhor fazem esse aproveitamento que irão prevalecer, daí a disparidade entre os diferentes locais ao fim de 4 a 12 sementeiras.

b) A mosca Lucilia cuprina, parasita do gado ovino na Austrália, quase foi eliminada pela aplicação do insecticida diazinon a partir dos anos 60, mas reapareceu uma dezena de anos mais tarde em número cada vez mais elevado, sendo estas populações presumivelmente descendentes das iniciais, mas resistentes ao insecticida. A análise genética determinou que um gene dominante Rop-1 (cromossoma 4) é responsável pela resistência; esse gene, que terá sido raro nas populações antes da aplicação do diazinon, tem um efeito pleiotrópico: também aumenta a assimetria do corpo, reduzindo a fertilidade (para este segundo fenótipo a dominância é incompleta). As moscas homozigóticas para este gene podem ter um fitness máximo na presença do diazinon desde que também tenham um outro gene dominante Scl (cromossoma 3) epistático sobre a assimetria provocada por Rop-1, dando moscas resistentes e com simetria e fertilidade normais. A pressão ambiental (tratamentos com diazinon) reforçou a complementaridade entre os genes Rop-1 e Scl que, mesmo sendo raros de início, parecem ter permitido a sobrevivência de algumas moscas em cada geração até que se fixou como padrão populacional a mosca homozigótica para os dois. Note-se que a localização destes genes em cromossomas diferentes tornava os desequilíbrios gaméticos muito transitórios (r = 0,5), e a temporária redução do efectivo populacional (cf. "deriva genética") contribuiu fortemente para a rápida fixação dos dois genes dominantes.

Todo o ciclo de vida deve ser considerado na interpretação de diferenças de fitness entre genótipos; em geral é em relação ao esporófito, pela maior diversidade de fenótipos e consequentemente pela maior proporção de loci envolvidos, que se devem encontrar os factores que determinam os componentes do fitness, isto é, uma maior viabilidade (por exemplo pelo vigor no crescimento vegetativo, desde o embrião à planta adulta, a longevidade em plantas perenes, a resistência às condições de stress, bióticas e abióticas, ou a nutrição dos embriões em desenvolvimento) e uma maior fertilidade (número de flores, sucesso na fertilização dos gametófitos femininos, sucesso na dispersão das sementes).

A acrescentar a estes factores pós-zigóticos, há os factores pré-zigóticos (actuando nos gametófitos), com a particularidade de a sua condição haplóide, por ausência de relações de dominância, deixar "a descoberto" todos os genes que se manifestem nestas gerações.

Os genes e respectivas frequências que se encontram em cada população natural são o resultado de um processo de adaptação, em que para as condições de uma determinada zona onde se encontra a população se constituiu um fundo genético (o conjunto desses genes e suas frequências) que lhe assegura a sobrevivência. Os genes menos favoráveis, por via da recombinação e selecção, ou são eliminados ou encontram-se em frequências muito baixas.

Quando os organismos são submetidos a selecção artificial, o fundo genético é profundamente alterado, o que por um lado está na base da resposta fenotípica pretendida, mas também, correlacionadamente ou não, envolve a perda de características que teriam importância na população natural mas que, por causa de passarem despercebidas durante o processo selectivo, não chegam a ser controladas. Dado que se vêem constritas à preservação de um património genético adaptado, as populações naturais são uma reserva genética muito importante para o melhoramento de espécies cultivadas: parte desse património pode vir a ser recuperado através de cruzamentos e selecção (cf. "recursos genéticos").

Seguem-se alguns resultados da Genética de Populações que servem para interpretar as frequências dos genes que se apresentam no tipo selvagem.

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Equilíbrios com selecção

Complementar à variável W (representativa do fitness), é o coeficiente de selecção S = 1 – W. É este parâmetro (representando em termos relativos a intensidade da selecção a que um determinado genótipo está sujeito), que importa considerar na interpretação das frequências genéticas sujeitas a forças de selecção.

A persistência de frequências residuais dos alelos desfavoráveis (que normalmente tenderiam para 0 com o tempo) nas populações deve-se em grande parte à contínua renovação desses alelos por mutação nos (muito mais frequentes) genes normais. Daqui resulta pois um primeiro conceito de frequências de equilíbrio fora do modelo de Hardy-Weinberg: o equilíbrio entre mutação e selecção. Considerem-se duas situações-tipo: aquela em que o gene normal é dominante (A), e aquela em que é recessivo (a):

gene normal dominante gene normal recessivo
SAA = SAa = 0 Saa = 0
Saa = S > 0 SAA = SAa = S > 0

As taxas de mutação (u ou v) são em geral muito baixas, da ordem dos 10–6 a 10–4 por geração, por isso as frequências de equilíbrio (representadas com acentos circunflexos) de alelos desfavoráveis em qualquer das condições ambientais relevantes para a sobrevivência e reprodução, especialmente se forem alelos dominantes, se encontram em valores extremamente baixos. Em loci poligénicos (cf. "variação contínua"), porém, os coeficientes de selecção são tanto menores quanto menor for o efeito do alelo desfavorável sobre o fenótipo (cf. "valores melhoradores" e "heritabilidade"), daí que nestes loci de pequeno efeito os coeficientes de selecção podem ser bastante inferiores a 0,1, dando frequências de equilíbrio relativamente altas.

Além disso, um gene desfavorável num determinado ambiente não tem de o ser em todos aqueles onde a espécie se dá. É assim que diferentes populações podem constituir ecótipos próprios dos ambientes a que se encontram adaptadas, em cada uma predominando variantes do tipo selvagem que se definem por conterem para cada locus um maior fitness médio nesses seus ambientes. Deste modo, pode não ser possível, nem sequer desejável, substituir em determinado local uma variedade que lhe está bem adaptada por outra sem essa mesma capacidade, mesmo que esta última desse melhor rendimento noutras condições (por exemplo onde se fez a selecção dessa variedade). Finalmente, o simples facto de haver ecótipos bem adaptados a determinadas condições leva a que tenham de ser preservados pelo seu potencial interesse no melhoramento para adaptação a esses terrenos (cf. "recursos genéticos").

As deduções destes valores de equilíbrio são relativamente simples, e apenas a título de curiosidade exemplifica-se um desses processos, para o valor de equilíbrio de um gene recessivo desfavorável:

Partindo de uma situação (p0 + q0)2, mas havendo um S = Saa > 0, as frequências após uma geração serão WAAp02, WAa×2p0q0, e Waaq02, dando um total p02 + 2p0q0 + q02(1 – S) = 1 – Sq02. A frequência q1 de a nesta geração passa então a ser [p0q0 + q02(1 – S)]/(1 – Sq02) = q0(1 – Sq0)/(1 – Sq02), visto que p0 + q0 = 1. Daqui resulta que a frequência de a vai baixando por geração à razão ?q = qn + 1 – qn = –Sqn2(1 – qn)/(1 – Sqn2).

Por outro lado, temos um incremento da frequência de a por geração devido à mutação, que facilmente se deduz ser ?q = u(1 – qn). Considerando que os dois processos são independentes entre si, haverá um valor de q tal que o incremento pela mutação a partir do alelo favorável A é exactamente igual ao decréscimo, no mesmo espaço de uma geração, pela selecção negativa sobre a:

Os termos (1 – q) anulam-se, ficando-se com a igualdade Sq2(1 + u) = u. Tendo em conta que u << 1, pode simplificar-se para q2 = u/S, donde o valor de equilíbrio apresentado anteriormente (com q-circunflexo).

Nos casos em que diferentes alelos são favorecidos em diferentes circunstâncias dentro de uma população, então o tipo selvagem pode comportar mais do que um alelo frequente numa população — o locus diz-se polimórfico. Um modelo comum de polimorfismo envolve alelos que conferem um fitness máximo nos heterozigóticos, o que equivale a uma situação de sobredominância para o fenótipo fitness. Um exemplo disso na espécie humana permite explicar a frequência relativamente elevada do alelo HbS em regiões onde prevalece a malária (cf. relações de dominância). Em termos matemáticos, quando há vantagem de um heterozigoto Aa, SAa = 0, SAA > 0, Saa > 0, de que resultam frequências de equilíbrio

e

Segundo uma interpretação genética da auto-incompatibilidade em certas famílias de angiospérmicas (cf. "depressão de consanguinidade"), os tubos polínicos que expressam em certos loci alelos também presentes nas células do pistilo onde se desenvolvem não chegam a participar na fecundação, porque são destruídos antes de poderem chegar aos óvulos. Isso irá acontecer, em princípio, em todos os tubos polínicos provenientes de auto-polinização. Assim, dá-se uma selecção pré-zigótica de modo a que resulte um excedente de heterozigóticos em relação ao previsto pela lei de Hardy-Weinberg (cf. "consanguinidade"); acresce nestes casos a "vantagem" de cada novo alelo surgido por mutação nesses loci, porque permite a "evasão" dos mecanismos de auto-incompatibilidade em praticamente todas as flores femininas presentes nessa geração. Por isso (nesta interpretação) estes loci são altamente polimórficos (frequentemente 30 ou mais alelos).

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Deriva genética

Em muitos casos a dimensão da população afasta-se de tal maneira do modelo de Hardy-Weinberg que as frequências genotípicas vão ser afectadas por um erro probabilístico de amostragem dos gâmetas. Daqui resulta a deriva genética, isto é, uma oscilação ao acaso das frequências dos genes. Por isso em populações pequenas a acção da selecção, tendente aos valores de equilíbrio expostos anteriormente, torna-se menos determinante das frequências dos genes.

Exemplo

O desvio-padrão para as frequências p e q no desenvolvimento de (p + q)N, em que N é o número de indivíduos obtidos por geração numa população panmíctica diplóide, é (2N refere-se ao número de gâmetas que intervêm em cada geração).

Subsituindo os valores desta expressão numa variedade de combinações, obtém-se:

(sublinhados os valores de desvio-padrão maiores que a frequência q)
N
q
10000 1000 100 10 1
0,5
0 0,0035 0,0112 0,0354 0,1118 0,3536
0,05
0 0,0015 0,0049 0,0154 0,0487 0,1541
0,005
0 0,0005 0,0016 0,0050 0,0158 0,0499
0,0005
0 0,0002 0,0005 0,0016 0,0050 0,0158

Nesta tabela ilustra-se como, numa população pequena (N = 100), mesmo uma mutação rara (q = 0,0005) pode numa só geração tornar-se muito menos rara — mas também desaparecer. É pela deriva genética que se entende a eliminação de um alelo numa população, enquanto noutra população da mesma espécie, até vivendo em condições ambientais semelhantes mas igualmente de reduzidas dimensões, esse mesmo alelo pode ser fixado, isto é, a sua frequência chegar a 1. A deriva genética pode acelerar enormemente a diferenciação entre populações da mesma espécie, em certa medida independentemente dos coeficientes de selecção.

Efectivos populacionais com números muito baixos podem constituir episódios da história duma população, episódios durante os quais as frequências dos genes, tendo andado "à deriva", resultaram em situações imprevisíveis, por exemplo no surgimento de um polimorfismo por aumento de frequência de um gene raro. Este "efeito de gargalo" sobre os gâmetas de uma geração há-de ser revertido se a população voltar a aumentar de tamanho e esse alelo for desfavorável, voltando aos valores de equilíbrio entre mutação e selecção; mas se for favorável, seja em homozigose seja em heterozigose, a selecção poderá até aumentar a respectiva frequência na população, tendente aos valores de equilíbrio que reflectem essa vantagem. Na ausência de episódios de deriva genética (isto é, sem "arriscar" no "jogo" das frequências), esse gene favorável atingiria o equilíbrio muito mais devagar. Daí que se considere a deriva genética um factor da maior importância, se bem que indirecto, para a Evolução e adaptação das populações.

Mas ainda existe uma terceira possibilidade: a de um gene que se tornou frequente por deriva genética e ser neutro selectivamente (isto é, todos os genótipos que ele constitui na população têm um fitness máximo); nesse caso, tenderá a permanecer nas frequências atingidas ao fim da deriva, por via do equilíbrio de Hardy-Weinberg.

Por se ter verificado uma forte diferenciação entre diferentes populações das mesmas espécies, contando cada população séries próprias de alelos neutros (geralmente só diferenciáveis por análises moleculares), veio a estabelecer-se a chamada Teoria Neutral, que constitui uma segunda referência-base da Genética de Populações: segundo esta teoria, a maior parte das mutações não têm valor selectivo, são neutrais, acumulando-se nas populações sem condicionarem os fenótipos sujeitos à selecção. Os resultados matemáticos da Teoria Neutral permitem testar cada observação (por exemplo um polimorfismo) e dizer se ela é provavelmente de acordo com as previsões ou não.

Efeito fundador

O povoamento de certa zona com elementos oriundos de outras zonas (por exemplo, a importação de árvores) constitui uma amostragem dos genes da população de origem que, dependendo do número de indivíduos que fazem esse povoamento inicial, pode ser afectada de um erro probabilístico semelhante ao que está na origem da deriva genética. A população pode ter, deste modo, frequências genéticas diferentes das da população de origem meramente por erro de amostragem genética. Dá-se a este fenómeno o nome de efeito fundador. Na prática, isto quer dizer que, ao iniciar-se uma nova população, e pretendendo-se que ela tenha tanto quanto possível as características genéticas da população de origem, é muito importante maximizar o número de indivíduos fundadores.

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